Renato Ortiz

Samira Feldman Marzochi (UFSCar)

Renato Ortiz, um objeto heurístico

Esta bionota sobre Renato Ortiz cometerá a deselegância de construir o intelectual, meu professor e ex-orientador de pós-graduação, como um “objeto heurístico”. Abro a oficina e separo as ferramentas para modelar algo que está além de mim, a aluna e admiradora de seus livros, e além dele mesmo, o professor da sala de aula, da cantina do IFCH e das reuniões de orientação. Um objeto científico, afinal, é sempre uma terceira dimensão mediadora entre o observador e a realidade, um sistema de relações, uma totalidade particular que se impõe como um universo articulado. Como ele próprio dizia, “o que apaixona é a ideia”.

Ortiz é o emblema de uma intelectualidade capaz de encontrar caminhos, mesmo na adversidade, para levar adiante projetos de pesquisa arrojados sobre fenômenos sociais abrangentes e uma produção que se pode chamar de “obra”, – não só por privilegiar a publicação em livros, mas pela constância e pelos sucessivos desdobramentos entre problemas e temas.

Além de sua história de vida difícil, – aos oito anos perdeu o pai e a mãe logo que ingressou na Escola Politécnica da USP, – teve uma formação acadêmica diferenciada: não apenas estudou sociologia e antropologia em Paris, mas, por meio de seu orientador, Roger Bastide, numa Paris pretérita, a dos anos 1920 que fundou a escola uspiana dos anos 1930-40 através das missões francesas entre as quais Bastide se encontrava. Lendo outra vez suas memórias, confirmo a impressão de que Ortiz nunca deixou a França, mas também nunca esteve plenamente ali, e que sua riqueza e contemporaneidade se devem, precisamente, ao deslocamento geográfico, temporal e social de sua formação.

Nascido em Ribeirão Preto, a 20 de março de 1947, e criado em Taubaté, aos quinze anos foi enviado pela mãe ao Instituto de Zootecnia e Indústrias Pecuárias Fernando Costa, em Pirassununga, onde morou em regime de internato. Formou-se em 1964, aos dezessete anos, como técnico em laticínios. No mesmo ano, muda-se para a capital a fim de se dedicar às apostilas de cursinho pré-vestibular. Ingressa na Escola Politécnica da USP em 1966. Meses depois, sua mãe falece e, em 1969, abandona os estudos de engenharia.

Nos anos 1960, em São Paulo, durante a graduação na Politécnica, Ortiz participa ativamente dos movimentos de contestação política: une-se às passeatas, distribui folhetos, compõe o serviço de segurança da peça Roda Vida e, nos congressos estudantis, recebe os camaradas vindos de outros estados. Pela via da militância universitária, envolveu-se com as humanidades. Ainda cursando a Poli, no terceiro ano, teve aulas de filosofia com Vilém Flusser sobre a evolução das ciências e se deixou atrair pelos cursos noturnos do Instituto de Filosofia. Porém, os seminários demasiadamente tradicionais e bacharelescos para o momento o conduziram às ciências sociais.
Decide deixar a engenharia logo quando as universidades eram invadidas e fechadas pelas forças policiais da ditadura militar. Com a herança de sua mãe, um terço de um DKW, compra uma passagem de terceira classe para a Europa num navio da linha C. Embarca no Porto de Santos a 7 de março de 1970, com uma máquina de escrever e um violão no qual compôs algumas das canções que foram recentemente gravadas no álbum “Paris São Paulo” (2019). Desembarca em Vigo, na Espanha, duas semanas depois, aos 23 anos.

Na França, seu diploma da escola agrícola fora reconhecido como equivalente ao baccalauréat, a universidade era gratuita e o visto de permanência no país obtido sem muita espera. Nos dois primeiros anos, recebia irregularmente uma parte da pequena pensão da mãe e aceitava empregos temporários, mal remunerados e informais. Trabalhou numa fábrica de escovas de dente, foi pintor de parede, garçom de café, concierge, baby-siter e colhedor de uvas. Percorreu todo o mapa de Paris mudando-se em busca de moradias mais baratas, quartos em andares altos, sem banheiro, nem elevador. Graças a Fernando Perrone, ex-deputado exilado e doutorando em Paris, conseguiu um trabalho como pesquisador por alguns francos a hora.

Vincennes, Paris VIII, era o avesso da tradicional Sorbonne, uma universidade pós-Maio de 1968 inaugurada em janeiro de 1969. Multidisciplinar e experimental, atraía estudantes de esquerda e importantes intelectuais da vanguarda francesa, como Foucault, Lyotard, Guattari, Deleuze, Passeron, Chatêlet. Cabia ao aluno escolher as linhas temáticas e as disciplinas para compor sua formação acadêmica. Havia, contudo, uma forte tendência anti-intelectualista entre os estudantes. Chatêlet se empenhava em justificar a importância de Hegel, um intelectual burguês; Deleuze era seguidamente interrompido e Foucault se retirou logo no início dos trabalhos universitários.

A curiosidade, mas, sobretudo, a sensação de defasagem de conhecimento que acompanhou Ortiz em toda a sua trajetória, – desde menino, quando lia, indiscriminadamente, tudo o que lhe caísse nas mãos, passando pelo período em que se preparou para o vestibular, até a insatisfação com Vincennes, – foi o que mais favoreceu a sua produção acadêmica. Procurou a École Pratique des Hautes Études que, assim como o Collège de France, estruturava-se em torno de laboratórios e privilegiava a pesquisa. Não existia um edifício central e os cursos se dispersavam em diferentes bairros da cidade. Muitos de seus membros não tinham doutorado, mas produções relevantes, como Edgar Morin e Henri Desroches. Os estudantes deveriam elaborar projetos originais para a aprovação de um futuro orientador e as teses eram defendidas como uma espécie de mestrado. Ortiz redigiu um projeto de pesquisa sobre O Pasquim – um amigo jornalista, que tinha a coleção completa, emprestou-lhe – e Morin aceitou orientá-lo.

Desenvolveu sua investigação sob a abordagem da “análise de discurso” que se difundia na França com as leituras de Saussure, Lévi-Strauss e os formalistas russos. Ortiz frequentava os seminários de Morin, Roland Barthes, Christian Metz, e também as aulas de Foucault quando este ainda se dedicava ao projeto para o livro Vigiar e Punir no Collège de France. No grupo de pesquisa coordenado por Violette Morin, entrou em contato com a literatura sobre comunicação e cultura de massas: Abraham Moles, McLuhan, David Riesman, Lazarsfeld. Em 1972, Ortiz se graduou em sociologia por Vincennes, Paris VIII, e obteve também o diploma da École Pratique des Hautes Études.

Em suas visitas ao fichário do Instituto da América Latina, em Paris, para a pesquisa de doutorado, deparou-se com obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Antônio Candido e Roger Bastide que o atraiu, especialmente, pela obra Les Religions Africaines au Brésil. Um amigo das rodas de violão em Paris, colecionador de livros e discos do Brasil, guardava uma pequena biblioteca sobre a Umbanda escrita por teólogos da religião. Ao consultá-la, Ortiz pôde redigir um projeto de doutorado apresentado ao próprio Bastide que, embora muito idoso, aposentado da Sorbonne e trabalhando em tempo parcial no Laboratório de Psicologia Social da École Pratique, animou-se com a proposta e decidiu orientá-lo.

O encontro com Bastide o leva a Durkheim e aos ensaístas brasileiros. Estudante na década de 1920, quando o mundo durkheimiano dominava a sociologia e a antropologia francesas, Bastide assimila a tradição intelectual brasileira em sua visita ao Brasil, nos anos 1930: Silvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Oswald de Andrade. Mas a originalidade da tese de Renato Ortiz estava em sua oposição à tese de Bastide: a Umbanda constituía uma síntese religiosa sui generis, um fruto nacional da ruptura com relação à herança africana, não uma mera continuidade e enraizamento em outras terras.

Em 1973, de volta ao Brasil para a pesquisa de campo sobre a Umbanda, realiza freelancers para a Editora Abril, onde se encontravam vários ex-trotskistas, escrevendo verbetes para enciclopédias. Também produziu para a Revista Planeta, da Editora Três, alguns textos sobre cultos afro-brasileiros, tendo sido publicado apenas um, sobre Exu.

Em 1974, foi convidado por Roger Bastide, já em seu leito de morte, a um cargo de professor na Universidade de Louvain, na Bélgica, um contrato temporário de dois anos, para ministrar dois cursos para estudantes de mestrado, Antropologia Urbana e da Religião na América Latina. Começou, também, a trabalhar no Institut de L’Amerique Latine como assistente do professor Rabenoro que sucedeu Bastide na orientação, num curso sobre Metodologia das Ciências Sociais. Defendeu sua tese de doutorado em Sociologia e Antropologia, pela École de Hautes Études em Science Sociales, em junho de 1975. Seu primeiro artigo foi publicado nos Archives des Sciences Sociales des Religions. Henri Desroches, diretor da revista, solicitou-lhe, ainda, algumas resenhas para o L’Année Sociologique.

Neste mesmo ano, foi convidado pela Universidade Federal da Paraíba a trabalhar em João Pessoa, no Departamento de Ciências Sociais, e lá dirigir um núcleo de estudos históricos. De toda a sua trajetória, esta talvez tenha sido a pior experiência. Foi denunciado ao Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão de espionagem da ditadura militar, por colegas de departamento; teve problemas de adaptação e doenças de fundo emocional. Rompeu o contrato em 1977, retornou a São Paulo e ficou desempregado por alguns meses.

Em seguida, já no Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou seus primeiros livros e, por cartas, estabeleceu longo diálogo com Florestan Fernandes a partir do envio de sua tese de doutorado. Em Belo Horizonte, foi vice-presidente da associação de professores, participou da greve das universidades federais autárquicas (1980-81) e da criação da Andes, sendo membro da primeira diretoria, numa fase importante da luta pela democratização no país (que continua). Em 1984, deixa a UFMG e, em 1985, passa a integrar o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-São Paulo, onde permaneceu até 1988. Desde então, é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp.

Estabelecido no Brasil, afastou-se regularmente para realizar projetos de investigação e ministrar aulas no exterior. Foi pesquisador do Latin American Institute da Universidade de Columbia e do Kellog Institute de Notre Dame, nos Estados Unidos; professor visitante da Escuela de Antropologia, no México; titular da Cátedra Simon Bolívar do Institute des Hautes Études en Amerique Latine, na França, e da Cátedra Joaquim Nabuco da Universidade de Stanford, nos EUA.

O primeiro da família a ingressar numa grande universidade, Ortiz afirma, em suas memórias, que seu habitus o orientava para tudo que ele não foi. O pai não terminara o curso ginasial, era representante de vendas de produtos diversos, e sua mãe, precocemente viúva com três filhos, fez um curso de especialização em educação física. Contudo, desde menino havia o gosto excessivo pelo cinema e pela leitura, o curso de datilografia do Círculo Operário de Taubaté, por insistência da mãe, e toda a biblioteca herdada dos tios. E havia também o fantasma inspirador de um tio, Carlos Ortiz, ex-padre que abandonou a batina, o interior de São Paulo, aproximou-se do Partido Comunista, foi jornalista e cineasta, dava cursos de cinema, viajou para Moscou…

A biografia e a trajetória acadêmica de Renato Ortiz, assim revistas, nos ajudam a compreender e valorizar uma dimensão específica da teoria sociológica e de sua própria sociologia: a de que o habitus se constitui não exclusivamente do acúmulo de experiências e do aprendizado contínuo, mas, sobretudo, da ruptura com relação às formas anteriores. Ele emerge do corte simbólico entre um “antes” e um “depois”, envolve sempre rituais de passagem mais ou menos explícitos. Tanto na vida, quanto na teoria, um novo habitus desfaz o monge, uma nova síntese reinventa a tradição.

Sugestões de obras do autor:

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e Sociedade Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

ORTIZ, Renato. Um outro território: ensaios sobre a mundialização. São Paulo: Editora Olho d´água, 1997.

ORTIZ, Renato. O próximo e o distante: Japão e Modernidade-Mundo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2000.

ORTIZ, Renato. Ciências sociais e trabalho intelectual. São Paulo: Olho d’água, 2002.

ORTIZ, Renato. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006.

ORTIZ, Renato. A diversidade dos sotaques: o inglês e as ciências sociais. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

ORTIZ, Renato. Trajetos e memórias. São Paulo: Editora Brasiliense, 2010.

ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.