Michel Misse

Por Alexandre Werneck (UFRJ)

Michel Misse, um dos mais importantes pesquisadores da área de crime e violência no Brasil, nasceu em 12 de abril de 1951, em Cachoeiro de Itapemirim, Sul do Espírito Santo, cidade então com 30 mil habitantes (atualmente tem cerca de 230 mil) e até hoje para seus filhos “a capital secreta do Brasil” (para alguns, do mundo), como muitas vezes proclamava o também cachoeirense Rubem Braga. Filho de imigrantes libaneses, de progenitor comerciante e cioso por sua educação escolar e mãe atenta a seu crescimento intelectual, foi enviado em 1967, aos 16 anos, para o Rio de Janeiro, a fim de estudar.

Na capital Fluminense, traçou uma carreira ao mesmo tempo profundamente ligada a suas mazelas (e às do Brasil) e altamente abrangente em sua amplitude descritiva: com seu trio conceitual central, “sujeição criminal”, “acumulação social da violência” (Misse, 1999) e “mercadoria política” (Misse, 1997), descreve os mecanismos tanto histórico-estruturais quanto interacionais da violência urbana, oferecendo-lhe seu painel mais amplo, ao mesmo tempo ancorado em dados empíricos fortemente concretos – tanto quanto estatísticas de crimes, elementos de inquéritos e situações de operações policiais conseguem ser – e densamente fincados em diálogos com grandes modelos teóricos – a teoria sociológica é uma de suas frentes mais fundamentais e determinantes.

Militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) – entre 1968 e 1976 –, seria um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no estado (PT) – em 1981. A militância comunista ao longo da ditadura faria com que fosse perseguido, tendo sido, em 1972, sequestrado com sua companheira por policiais à paisana na Tijuca, onde ele morava. Levados para o Batalhão do Exército na rua Barão de Mesquita, notório reduto do DOI-Codi, foram torturados e, após soltos, monitorados por um longo período. Mas, para além do marcante engajamento político crítico, o marxismo teórico de sua formação é a base de toda sua trajetória. Entretanto, vislumbrando passos além da ortodoxia marxiana, bebeu em Weber para produzir um seminal diálogo entre os dois pensadores – e que seria tema de seu trabalho de mestrado, defendido em 1987, sob orientação de Carlos Hasenblag, no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), originando alguns de seus textos mais importantes, entre eles o antológico artigo “O senhor e o escravo como tipos limites de dominação e estratificação” (Misse, 1996).
Mas se a alta teoria domina a dimensão mais abstrata de seu trabalho, foram as circunstâncias da vida que o foram conduzindo para uma empiria das mais gritantes. Embora possa se perceber em expressões como “acumulação social da violência” o espetro de Marx rondando sua obra e em “mercadoria política” uma gaiola de ferro tipicamente weberiana, o crime e a violência se consolidam aos poucos ao longo da primeira fase de sua carreira como sua área de concentração, tornando-se até hoje o ambiente empírico de base para seus voos teóricos.

Assim, ingressou em 1970 no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A escolha sofreu algumas influências, entre elas a do jovem professor de pré-vestibular Dilson Motta, aluno do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da universidade, que o alertou para a importância de nomes como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, tornou-se seu amigo, colega de curso e companheiro de investigação. Juntos, empreenderiam, entre outras, a pesquisa As Práticas Criminais numa Situação de Marginalidade Social, cujos argumentos teóricos seriam publicados em 1979 no seminal livro Crime: O social pela culatra.

No IFCS, foi aluno de pensadores como Jether Pereira Ramalho, Liana da Silva Cardoso, Gilberto Velho, Yvonne Maggie, Neide Esterci e Emmanuel Carneiro Leão e colega de turma de nomes como José Ricardo Ramalho, Afonso Carlos Marques dos Santos e José Reginaldo Gonçalves. A formatura seria em 1974 – quando nascia este biógrafo, um de seus muitos orientandos de doutorado. Mas ainda no final do primeiro ano de Misse no então carcomido (física e moralmente, considerando-se os efeitos do AI-5) prédio do Largo de São Francisco, que hospedara a Escola Militar (1810-1870), a Escola Politécnica (1870-1939) e a Escola Nacional de Engenharia (1939-1969), o juiz de menores da Guanabara, Alyrio Cavallieri, pai de um colega de curso de Misse, abriu a possibilidade de os alunos proporem um projeto de pesquisa sobre a “delinquência juvenil” no Rio de Janeiro. Ele e mais sete colegas de vários períodos empreenderam um levantamento das estatísticas de infrações juvenis no estado na década de 1960 e, em uma amostra, analisaram autos de investigação. Com isso, traçaram o perfil social dos “menores infratores” e perceberam mais a construção social deles pelos agentes da lei do que elementos propriamente associando características dos incriminados aos crimes. O trabalho, assim, esboçava elementos presentes na interpretação do pensador ao longo de sua carreira e seria publicado em livro no ano seguinte (Misse et al., 1973).

Igualmente circunstancial, mas definidor de carreira, seria a produção de um dos textos mais conhecidos da obra de Misse, O estigma do passivo sexual, livro também de 1979. Ele nasceu como trabalho de curso em uma disciplina da graduação ministrada em 1974 pela professora Maria Stela Faria de Amorim na qual teve contato com os interacionistas americanos Howard S. Becker e a Erving Goffman, então pouco conhecidos no Brasil. Na obra, o autor analisa como sinais de estigmatização se estabilizam em expressões de gíria e palavrões, interpelando estruturalmente a abordagem interacionista de Goffman.

Essa aliança mutuamente crítica entre interacionismo e abordagem estrutural (marxista, mas também posteriormente de inclinação foucaultiana), atravessada pelo tratamento compreensivo weberiano marcaria a partir daí toda a obra de Misse, notadamente em seu trabalho mais seminal, a tese Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro, defendida, após muitos percalços, em dezembro de 1999 no Iuperj, perante uma banca constituída pelos professores Luiz Antônio Machado da Silva, seu orientador; Luiz Eduardo Soares; Sérgio Adorno; Roberto Kant de Lima; e Edmundo Campos Coelho. No trabalho, finalmente em vias de publicação em livro em 2022, ele parte do pressuposto, introduzido por Machado da Silva no começo dos anos 1990, de que “a violência urbana é uma representação social”. Nesse quadro, em que se constrói “uma imagem compartilhada da ordem urbana centrada em uma forte reação social ao que é experimentado como aquilo que fere o sentimento de segurança e os valores da vida, da dignidade humana e da propriedade” (Misse, 1999), tem lugar cotidianamente a sujeição criminal, um processo de representação identitária sobre determinados indivíduos como intrinsecamente criminosos tão consolidado que chega a fazer alguns desses próprios indivíduos se representarem dessa forma. Mas ela não seria algo estanque: teria uma história, formada segundo Misse por um processo de acumulação social de representações sobre a figura do bandido (que vai transitando do “malando” ao “marginal” e deste ao vagabundo” aos olhos das pessoas) e com isso os processos de criminação (a interpretação de uma ação como um tipo criminal definido) e a incriminação (a atribuição desse tipo a alguém), processos supostamente racionais e impessoais, mas na prática profundamente influenciados por uma sujeição acumulada (e pejada de preconceitos de classe, raça, gênero etc.).

Entre várias experiências no magistério (entre pré-vestibulares e faculdades, várias delas rompidas por demissões por perseguição política), torna-se professor da UFRJ em 1978, primeiramente como colaborador do Departamento de Ciências Sociais. Em 1981, foi convidado a se integrar com dedicação exclusiva ao departamento, sendo efetivado como professor assistente. E, em 1991, torna-se professor efetivo da UFRJ, carreira que trilhou chegando a professor titular, em 2014, e se aposentando em 2018. Desde então, permaneceu no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), de cuja fundação participou (tendo orientado desde o começo dos anos 2000 mais de 50 trabalhos, entre teses e dissertações), lecionando, orientando e coordenando projetos de pesquisa no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu).

Agregador, Misse formou e integrou vários coletivos de trabalho e pesquisa. Em 1977, ele e vários colegas (Dilson Motta entre eles) criaram o Socii – Pesquisadores Associados em Ciências Sociais, que funcionou até 1988 e entre outras realizações, permitiu a ele promover um até hoje mítico curso de leitura de Marx de cinco anos e criar um “núcleo de estudos e pesquisas sobre crime”, que realizou vários trabalhos relevantes e seria o embrião da ideia do que seria o Necvu, fundado em 1999, ano de defesa de sua tese.

O Necvu passaria a congregar pesquisadores das áreas de estudos de crime, violência, conflito e Justiça Criminal e moralidades, entre professores, pós-doutorandos, alunos de graduação e pós-graduação, desenvolvendo, ao longo de duas décadas, algumas das pesquisas mais relevantes desse cenário no país, todas atravessadas por uma das marcas do núcleo, a busca por contribuições consistentes ao mesmo tempo em termos de dados de interesse público e de desenvolvimento teórico em sentido amplo. Entre as grandes pesquisas realizados pelo Necvu, todas sob a coordenação de Misse, estão, aqui por meio das principais publicações geradas: O Inquérito Policial no Brasil: Uma Pesquisa Empírica (2010); Os Autos de Resistencia no Rio de Janeiro (2001-2011) (2013); Segurança Pública nas Fronteiras (2013-2016) (2016); Violência, Democracia e Segurança Cidadã (2008-2016, em um INCT-CNPq) (2017); e as atuais Os Sentidos do Cárcere: Incapacitação e Ressocialização na Realidade Prisional Brasileira Contemporânea e A Acumulação Social da Violência no Rio De Janeiro: Novos Desafios, que empreende uma atualização da descrição da violência urbana como Misse a pensou em Malandros, marginais e vagabundos.

Boa parte dessa produção teórica se consolida no precioso Crime e violência no Brasil contemporâneo (2006), livro no qual são coligidos vários textos do percurso de Misse, alguns deles até então inéditos. Ele carrega a síntese de seu pensamento. Além disso, o sociólogo organizou três coletâneas com trabalhos de pesquisadores de seu núcleo, traçando um painel da vasta gama de pesquisadores por ele formados e influenciados: Acusados e acusadores: Estudos sobre ofensas, acusações e incriminações (2008); Conflitos de (grande) interesse: Estudos sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas (com Alexandre Werneck, 2012) e Mercados ilegais, violência e criminalização (com Sérgio Adorno, 2018).

Em 2008, criou, juntamente com este biógrafo, Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, publicação vinculada ao Necvu e ao PPGSA, que se consolidou como a mais importante da área dos estudos de crime, violência e moralidades no país, tendo sido integrada a importantíssimos indexadores nacionais e internacionais e figurando entre os extratos avaliativos mais elevados do Qualis Capes.

Michel Misse tem recebido muitos reconhecimentos ao longo de sua carreira, tanto ao ocupar cargos, como a direção do IFCS (1990-1993) ou a direção geral da editora UFRJ (2012-2019), quanto ao se tornar professor titular – ocasião em apresentou a definitiva conferência “Violência e teoria social” (2016). Mas, no final dos anos 2000 viria um de seus reconhecimentos para ele mais preciosos: o filho de Cachoeiro de Itapemirim, que deixou sua terra para se estabelecer no Rio de Janeiro, foi agraciado com um dos galardões mais elevados do panteão da cidade, o orgulhoso título de Cachoeirense Ausente Número Um de 2009.

Sugestões de obras do autor:

MISSE, Michel et al. Delinquência Juvenil na Guanabara: Uma Introdução Sociológica. Rio de Janeiro: Tribunal de Justiça da Guanabara/Juizado de Menores da Guanabara, 1973.

MISSE, Michel. O estigma do passivo sexual: Um símbolo de estigma no discurso cotidiano (3a. edição aumentada). Rio de Janeiro: Booklink, 2005[1979].

MISSE, Michel; MOTTA, Dilson. Crime: O social pela culatra. Rio de Janeiro: Achiam/Socii, 1979.

MISSE, Michel. O conceito de classes sociais em Marx e Weber: Introdução a uma divergência problemática. Dissertação (mestrado), Iuperj, 1987.

MISSE, Michel. “O senhor e o escravo como tipos limites de dominação e estratificação”. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 39, n. 1, 1996, pp. 61-100.

MISSE, Michel. “As ligações perigosas: Mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio”. Contemporaneidade e Educação, ano II, n. 1, 1997, pp. 93-116.

MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022[1999].

MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: Estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

MISSE, Michel. “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, 2007, pp. 139-157.

MISSE, Michel (org). Acusados e acusadores: Estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

MISSE, Michel. “O inquérito policial no Brasil: Resultados gerais de uma pesquisa”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v.3, n.7, 2010, pp. 35-50.

MISSE, Michel; Werneck, Alexandre (orgs). Conflitos de (grande) interesse: Estudos sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

MISSE, Michel; GRILLO, Carolina Christoph; TEIXEIRA, Cesar Pinheiro; NÉRI, Natasha Elbas. Quando a polícia mata: Homicídios por ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink, 2013.

MISSE, Michel. “Violência e teoria social”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 9, n. 1, 2016, pp. 183-204.

MISSE, Michel; ADORNO, Sérgio (orgs). Mercados ilegais, violência e criminalização. São Paulo: Alameda, 2018.

MISSE, Michel. “Violence, Criminal Subjection and Political Merchandise in Brazil: An Overview from Rio”. International Journal of Criminology and Sociology”, n. 7, 2018, pp. 135-148.