Maria Lucia Werneck Vianna

Por Marcelo Burgos (PUC/RJ)

Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna nasceu em março de 1943, no Rio de Janeiro. Filha de Iracema, professora de ensino fundamental de escola pública, e do Brigadeiro Francisco Teixeira, desde muito cedo toma contato com a política, em especial pela causa nacionalista de seu pai que, então à frente da estratégica 3ª Zona Aérea, teve uma destacada participação no esforço de resistência ao golpe de 1964.

Pouco antes desses acontecimentos, em 1962, Maria Lucia ingressa no curso de Ciências Sociais, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia e Ciências Sociais (atual IFCS/UFRJ), no mesmo ano em que se filia ao PCB. Até ali, seguindo os passos da mãe, realizara formação secundária no tradicional Instituto de Educação, localizado na Tijuca, e desde 1961 já lecionava em uma escola pública de ensino fundamental.

Ao longo de sua formação universitária, Maria Lucia se envolve com o movimento estudantil e participa do Centro Popular de Cultura da UNE (Teatro Popular), onde convive com diversos jovens intelectuais e artistas, entre os quais Antonio Carlos da Fontoura, Cacá Diegues, Ferreira Gullar e Oduvaldo Vianna Filho. É no CPC que conhece Luiz Werneck Vianna, com quem se casaria e teria seus quatro filhos.
Entre a conclusão de sua graduação, em 1965, e seu ingresso no mestrado no Instituto Universitário de Pesquisas (IUPERJ), da Universidade Cândido Mendes, em 1973, Maria Lucia divide seu tempo entre a maternidade (em 1974 nasce o seu 4º filho), a docência no ensino básico e a militância política. Suas atividades no PCB a levam à prisão por um curto período em 1970. Em 1974, ela vai à União Soviética fazer um curso teórico na “Escola de Quadros” com o professor Anastacio Mansilla. A partir de 1975, adere ao MDB, na luta pela redemocratização do país. No final dos anos de 1970, ainda encontra tempo para presidir a associação de moradores do bairro em que vive até hoje.

Sob muitos aspectos, Maria Lucia é uma representante típica de uma geração que vivencia a dupla transição nas ciências sociais brasileiras precipitada pelo regime militar. A primeira, tem a ver com o deslocamento da centralidade das controvérsias então existentes entre uma ciência social comprometida com o desenvolvimentismo (que tinha no ISEB seu principal centro de irradiação, com evidente influência sobre as ciências sociais carioca), e uma sociologia comprometida com a modernização da economia e da sociedade (sob a liderança do Departamento de Sociologia da USP). Essa mudança se materializará na eleição de novos temas e métodos de trabalho, demarcando uma nova safra de pesquisas, realizadas por meio de dissertações e teses, muitas delas no exterior. Agora, estudar a dinâmica de funcionamento do Estado autoritário tornava-se tarefa urgente e prioritária.

A segunda transição tem a ver com a maior institucionalização das ciências sociais, que ocorre ao longo dos nos anos de 1960 e 70. É desse contexto a criação dos mestrados em ciência política e em sociologia do IUPERJ. Quanto mais o regime autoritário se aprofunda, intensificando a perseguição a intelectuais e lideranças democráticas e de esquerda, e mais ataca frontalmente a área das ciências sociais, mais ela tende a valorizar o ethos acadêmico como marca distintiva de sua atividade profissional. Nesse quadro, para muitos jovens a militância política, que ainda transitava pela clandestinidade, passa a conviver com o investimento nos estudos em nível de pós-graduação, reclamando deles grande dose de perseverança.

Essas duas transições no campo das ciências sociais, e as agruras desse contexto tão difícil, em especial para mulheres e mães com ambições intelectuais, estão claramente presentes na trajetória e nas escolhas acadêmicas feitas por Maria Lucia. Sua dissertação de mestrado, orientada por Cesar Guimarães, reflete de modo muito nítido esse pano de fundo. Intitulada “A Administração do “Milagre”: o Conselho Monetário Nacional – 1964/74”, e convertida em livro pela Editora Vozes, em 1987, explora a forma pela qual a modernização econômica realizada pelo governo militar combinava mecanismos de repressão política e controle sobre a vida sindical, com uma nova organização administrativa, que permitia uma articulação seletiva do Estado com a elite empresarial. O CMN é estudado por ser uma agência estratégica para a compreensão do novo tipo de controle estatal sobre o sistema financeiro, em um momento de forte expansão econômica. No entanto, mais do que um estudo monográfico de uma agência, a exemplo de outros de sua geração, o trabalho ambiciona identificar elementos fundamentais da lógica do funcionamento do Estado autoritário. Nas palavras da própria autora “é o momento da intermediação dos interesses” que mais importava compreender.

Maria Lucia mobiliza o repertório conceitual formulado pelo cientista político argentino, Guilhermo O´Donnel, para dar conta da lógica de funcionamento de regimes autoritários da América Latina. E o estudo do CMN permitia demonstrar o caráter “bifronte e segmentário do corporativismo burocrático autoritário” do Estado brasileiro. Bifronte porque combinava um lado estatizante com outro privatista, em uma duplicidade que contribuiria para “solidificar as clivagens de classe existentes”. Assim é que a “face estatizante do corporativismo burocrático autoritário”, conclui a autora, “funciona principalmente para as classes subalternas, ao passo que a face privatista abre canais de acesso das elites aos centros de decisão” (p.79).

Cabe lembrar que a pesquisa sobre o CMN é empiricamente construída em um ambiente ainda muito hostil ao trabalho dos cientistas sociais. A autora não tem acesso a atas formais das reuniões do Conselho e/ou a qualquer documentação a respeito, pois tudo era considerado sigiloso. Por isso, seu trabalho tem que se basear em material da imprensa, ela mesma submetida à frequente censura, e em entrevistas com membros do CMN e da classe empresarial. Mas como os nomes e posições dos entrevistados não podiam ser revelados, a exposição dos dados levantados pela pesquisa exige cautela redobrada.

A exemplo do que fizera em sua dissertação, Maria Lucia leva para seu trabalho de doutorado o mesmo interesse pela decodificação da lógica de articulação de interesses entre Estado e sociedade. Seu objeto, agora, é o sistema de seguridade social, base fundamental dos direitos sociais previstos pela Constituição de 1988, e mola mestra de sua arquitetura redistributiva e do combate às desigualdades sociais. Realizada sob orientação de Eli Diniz, a tese é concluída em 1995, e convertida em livro pela Editora Revan três anos depois, sob o título “Americanização (perversa) da seguridade social no Brasil. Estratégias de bem-estar e políticas públicas”.

No livro, Maria Lucia sustenta que o sistema de seguridade social desenhado em 1988 estava sendo ameaçado por um processo que tendia a levar o país na direção de uma americanização (perversa), que tinha como principal lógica de ação o lobbismo, cuja presença e importância ainda não tinham sido plenamente reconhecidas na literatura especializada brasileira. Se, no contexto da ditadura, as formas de representação de interesses contavam com os “anéis burocráticos”, organizados na estufa do Estado, e apoiados sobre um forte controle da vida sindical e popular; agora, a dinâmica se mostrava mais complexa, uma vez que o próprio ambiente democrático exigia formas muito mais estruturadas de canalização de interesses. “O lobismo brasileiro, afirma a autora, constitui prática em ascensão que se aperfeiçoa na medida em que a sociedade se diversifica e a democracia se consolida” (p.174).
A lógica dos lobbies é multifacetada e fragmentária, impedindo a construção de pactos assentados em um sistema de solidariedade entre gerações e classes. Por isso, a autora critica a insistência na mobilização de uma abordagem europeia para pensar o projeto de welfare state brasileiro, e entende ser necessário demarcar bem a nossa diferença, mesmo sob o risco do uso de um conceito tão largo como o de “americanização”. A expansão dos lobbies como forma própria de articulação de interesses vai de mãos dadas com a crescente mercantilização de bens de seguridade social (como os planos de saúde e as previdências privadas). Nesse passo, o serviço público, originalmente concebido para ser universal, torna-se cada vez mais precário e voltado exclusivamente para os pobres. Não menos importante para a plena compreensão da proposta crítica do livro, é o adjetivo “perverso”, com o qual a autora qualifica o processo de americanização. Pois ao contrário dos EUA, no Brasil, “o aparente não-planejamento da evolução do sistema resultou em total desregulação das relações público/privado” (p.130).

Por seu caráter inovador, tanto na forma como delimita os contornos do estudo, concebendo a noção de “seguridade social” de forma sistêmica e não setorializada como se costumava fazer até então; bem como por sua abordagem teórica, que permite que se identifique tendências ainda pouco percebidas na literatura, o livro se tornaria uma obra de referência sobre o assunto. E mais que isso, um guia, capaz de orientar a resistência, na qual, como ela ensina, fosse possível “convivência e compatibilidade entre público e privado, com maior eficácia do primeiro e menos selvageria do último, com regras claras e democraticamente estabelecidas acerca dos respectivos espaços e das relações entre ambos” (p.186).

Quando da conclusão de sua tese, Maria Lucia já ocupa posição institucional consolidada na UFRJ, como professora do Instituto de Economia, do qual viria a ser diretora de graduação, entre 1996 e 2002. Na UFRJ, passa a desempenhar importante papel na construção de um diálogo entre economia, sociologia e a área de políticas públicas, do que é exemplo a sua atuação na organização do precursor programa de mestrado em Planejamento Econômico e Políticas Públicas, no início dos anos de 1990. Tal vocação também a leva a se tornar Decana do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, entre 2010 e 2014. Mais tarde, em 2017, torna-se Presidente da Associação de Docentes da UFRJ, posição que coroa a forma militante com que sempre encarou sua atividade intelectual.

Ao mesmo tempo em que ganha protagonismo na vida institucional da UFRJ, Maria Lucia afirma a sua voz no debate público sobre a seguridade social, realizando percursos acadêmicos voltados para a valorização da abordagem interdisciplinar da matéria. Disso resulta seu vínculo de pesquisadora convidada da Escola Nacional de Saúde Pública, e a criação, em 2003, com pesquisadoras da área médica como Lígia Bahia, do Laboratório de Estudos de Política de Saúde e Seguridade.

Diante de um contexto no qual o debate sobre esses temas tem sido amplamente dominado por grupos de interesse que, frequentemente, contam com forte apoio da mídia hegemônica, Maria Lucia tem sido uma voz lúcida e corajosa contra a corrente de um reformismo cujo viés não para de validar as tendências perversas identificadas por ela há mais de 20 anos. A contundente caracterização da noção de público no país, extraída de um artigo de 2015, e transcrita abaixo, exprime bem a forma cáustica e irônica que distingue a assinatura de suas intervenções:

“Público, no Brasil, consiste numa categoria amorfa: uma noção de baixa intensidade. A esfera pública é entendida como terra de ninguém e portanto passível de ser capturada por cada um. O individualismo predatório, entretanto, não é distribuído igualitariamente por toda a população. O poder de impor interesses não é simétrico”.

Mas essa caracterização não seria completa, se a ela não se juntasse uma outra marca registrada de sua sociologia militante, que é a sua permanente preocupação em pensar caminhos para a mudança, e a sua defesa do bem comum. No referido artigo de 2015, ela mesma se pergunta: “Perspectivas?” E responde:
“Certamente é possível e plausível imaginar um cenário de mudanças. Mudanças no sentido de ampliação dos recursos destinados à saúde pública, mudanças que reduzam a segmentação da oferta de atendimento, mediante regulação mais rígida do privado e expansão do público, mudanças que revertam a fragmentação territorial, através de arranjos cooperativos de gestão regionalizada”.

Mas, para isso, conclui:

“seria necessária uma drástica reversão do quadro de desigualdade social (…) em um cenário em que os brasileiros substituam o uso constante da primeira pessoa do singular pelo uso, ao menos frequente, da primeira pessoa do plural”.

Sugestões de obras da autora:

VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck (1987). A Administração do “Milagre” – O Conselho Monetário Nacional – 1964-1974. Editora Vozes, Petrópolis.

VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck (1998). A Americanização (perversa) da seguridade social no Brasil. Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Editora Revan, Rio de Janeiro.

VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck (2015). A viabilidade de um sistema universal de saúde no Brasil. Plataforma de Política Social. Capturado em 05 de janeiro de 2022. Disponível em: https://plataformapoliticasocial.com.br/a-viabilidade-de-um-sistema-universal-de-saude-no-brasil/

VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck (2017) – “Reforma da Previdência: contexto atual, pós-verdade e catástrofe” (íntegra). Conferência realizada na FIOCRUZ – YouTube. Conferência “Reforma da Previdência: contexto atual, pós-verdade e catástrofe” (íntegra) – YouTube