Maria Izabel de Medeiros Valle

Por Cleiton Ferreira Maciel

Maria Izabel de Medeiros Valle, conhecida como “Bebel” na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e entre amigos, é uma socióloga amazonense, sendo uma das principais pesquisadoras da Amazônia, pioneira nos estudos de Sociologia do Trabalho e dos Estudos Urbanos e destacada analista das metamorfoses pelas quais passaram o Pólo Industrial da Zona Franca de Manaus (PIM). É professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais da UFAM e, atualmente, docente colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da mesma universidade.

Nasceu em Manaus, em 19 de maio de 1957, numa família muito ligada à área de humanidades. Ela é a 5ª filha de um total de 8 filhos da família Valle. Seu pai, Rodolpho Guimarães Valle, formado em Direito pela Universidade do Amazonas (UA), tornou-se conhecido na cidade por sua atuação junto às causas sociais e também por ter exercido os cargos de vereador, professor e Procurador do Município. Sua mãe, Consuelo de Medeiros Valle, formada em Serviço Social também pela UA, era professora e diretora de grupos escolares, exerceu a profissão junto às populações de leprosários e penitenciárias e atuou na regularização de terras de famílias pobres de Manaus.

Izabel Valle fez os seus estudos primários no Grupo Escolar Marechal Hermes, o ginásio no Colégio N.S. Auxiliadora e os dois primeiros anos do secundário no Colégio Dom Bosco, uma das principais instituições de ensino do estado do Amazonas. Nessa época, também cursou música, piano e acordeão, atividades que exerceram grande influência na sua formação e que a levarão a fazer parte de diversos movimentos artísticos da cidade de Manaus, com destaque às apresentações musicais do grupo A Gente, da qual era integrante.

No começo da década de 1970, os seus irmãos mais velhos saíram de Manaus para cursar faculdade em outros estados, deslocamento que era muito comum entre a intelectualidade amazonense do período. Seguindo essa trajetória, em 1975, Izabel Valle se desloca para o Rio de Janeiro, onde residia um dos seus irmãos, e finaliza seus estudos secundários no Colégio Princesa Isabel, que tinha convênio com o Miguel Couto Bahiense, um preparatório para o vestibular. Lá teve a oportunidade de ter aulas com professores expulsos das universidades pela ditadura militar e que, nos cursinhos, fomentavam um debate crítico sobre o mundo e sobre a própria situação do país naquele momento. Isso terá grande impacto sobre Izabel Valle, que, sonhando juntar uma postura militante com uma ciência engajada, decidirá fazer o vestibular para Ciências Sociais na UFRJ.

Assim, ela ingressa no curso de Ciências Sociais da UFRJ em 1976, concluindo em 1979, tendo como patrono da sua turma o Cacique Juruna. Na graduação, Izabel Valle se destaca como uma das integrantes que ajudaram a reconstruir o Centro Acadêmico Edson Luís e como uma das lideranças do Movimento Estudantil na cidade do Rio de Janeiro. Ela também participa do Congresso Estudantil em Belo Horizonte, em 1977, que visava reconstruir a UNE, dissolvida pelos militares. O protesto dos estudantes sofreu forte repressão, e Izabel Valle, juntamente com outros líderes do movimento, fica presa durante 24h, é fichada pelo DOI-CODI e enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Defendida pelo advogado de presos políticos, Marcelo Cerqueira, responderá ao restante do processo na cidade do Rio de Janeiro.

Sua formação será marcada, por um lado, pelo controle da ditadura sobre quase toda a literatura universitária, o que não a impediu de ter contato com diversas leituras sociológicas, com destaque aos textos de Karl Marx. Por outro, como relatou-me Izabel Valle, “minha formação terá base também na convicção de que a liberdade é um valor fundamental para a convivência, as relações sociais e a vida em sociedade”. Nesse aspecto, cabe destacar o papel que o professor Michel Misse, recém empossado na UFRJ, teve na trajetória da nossa autora. Misse funda um grupo de estudos chamado SOCII que se reunia semanalmente na Praça da República, “numa salinha quase clandestina, por causa da ditadura”, diz Izabel Valle, para estudar o filósofo alemão. Lá ela lerá, pela primeira vez, O Capital e será impactada pela discussão sobre trabalho e capitalismo. Além de Michel Misse, marcam a formação de graduação de Izabel Valle os professores Jether Ramalho, Neide Esterci e Yvonne Maggie.

Finalizada a graduação no Rio de Janeiro, Izabel retorna para o Amazonas em 1980, com sua primeira filha Mayra, que tinha um ano e dois meses. Contratada como Técnica de Trabalhos Judiciários e, depois, Chefe da Secção de Seleção e Treinamento, em 1981, ela passa a integrar os quadros TRT-AM, 11ª Seção, que tinha sido inaugurada em Manaus. Em 1982, ela faz o concurso para o Departamento de Ciências Sociais (DCIS) da Universidade Federal do Amazonas e pede demissão do TRT em 1983, logo após o nascimento da sua segunda filha, Naysa. Nessa época, o DCIS ainda não tinha o curso de Ciências Sociais, propriamente dito, abrigando um conjunto de professores de diferentes áreas em torno do curso de Estudos Sociais.

Assim, primeiro foram sendo criados outros cursos no DCIS da UFAM, como os de Geografia e História e, em meados da década de 1980, vão ser iniciadas as discussões para a formação do curso de Ciências Sociais, tendo Izabel Valle como uma das organizadoras desse movimento. Para isso, serão realizados diversos seminários de discussão sobre o componente curricular, os referenciais teóricos e apontado o objetivo principal do curso: a formação de quadros capazes de pensar a região amazônica, suas características sociais e a sua singularidade no contexto da nação e do mundo. Além dos professores da UFAM, como Izabel Valle, Marilene Correa da Silva, Ernesto Renan Freitas Pinto, Heloísa Lara Campos da Costa e Selda Vale da Costa, foram fundamentais as diretrizes e os diálogos com professores da chamada “Escola Paulista de Sociologia”, que estiveram presencialmente em Manaus, dentre eles, Octávio Ianni e Renato Ortiz. Nascia, dessa maneira, em 1986 o curso de Ciências Sociais, com seu primeiro vestibular em 1987. “Ali começaram a ser formados os primeiros cientistas sociais no Amazonas, efetivamente”, relembra Izabel Valle.

Em um primeiro momento, o curso contava com professores ainda sem pós graduação. Contudo, a partir do início dos anos 1990, com a solidificação do curso, face à formação das primeiras turmas e diante da necessidade de estudos avançados acerca da Amazônia, os professores do departamento começaram a sair para cursar mestrados e doutorados em outros estados. É nesse movimento que Izabel Valle, sob a orientação da professora Alice Rangeu de Paiva Abreu, vai fazer o Mestrado em Sociologia, na UFRJ, de 1994 a 1996, defendendo o trabalho intitulado: Trabalho e Reestruturação Produtiva – Dois Ensaios, que discutia a questão de gênero, as relações de trabalho no Brasil e analisava a modernização e a qualificação profissional no setor metalmecânico do Rio de Janeiro. Desse período, além de sua orientadora, marcam sua pós-graduação os professores José Ricardo Ramalho, Neide Esterci, Mirian Goldenberg, Bernardo Sorj e Elisa Reis.

Também orientada pela professora Alice Rangeu de Paiva Abreu na UFRJ, Izabel Valle fará o Doutorado em Sociologia e Antropologia de 1996 a 2000, defendendo a tese: Trabalho e reestruturação produtiva: Um estudo sobre a produção offshore em Manaus. Nesta pesquisa, depois transformada em livro, Valle buscou entender os impactos da modernização industrial brasileira, implementada desde o começo dos anos 1990, sobre os processos produtivos e sobre os trabalhadores do setor eletroeletrônico de Manaus. Como resultado do estudo, a autora destacou a instauração de profundas mudanças tecnológicas e gerenciais nas linhas de produção a custo de um conservadorismo em termos de participação dos sindicatos nos processos decisórios e sob a precarização dos vínculos de trabalho. Um processo que Izabel Valle denominará como neotaylorismo.

Esse trabalho será um referencial na sociologia face à pesquisa empírica de fôlego nas fábricas do PIM e pela densa análise teórica acerca do que seria o capitalismo flexível na Amazônia. Além disso, será um marco por conta do desenvolvimento de uma extensa metodologia e por abrir várias frentes de investigação para estudos subsequentes da sociologia do trabalho no PIM. Como metodologia, destacam-se o estudo multicaso de empresas globais, fazendo comparações entre elas, o acesso a essas fábricas em um momento em que elas ainda eram bastante arredias aos estudos acadêmicos e pelo amplo espectro de agentes sociais entrevistados, como trabalhadores, gerentes e líderes sindicais. Frise-se que, terminada a pesquisa, Izabel Valle continuou mantendo contato com diversos diretores industriais do PIM, recorrentemente levando estudantes para visitas aos parques fabris e, desse modo, deixando portas abertas e contatos para pesquisas ulteriores.

É diante dessa trajetória intelectual e pessoal que podemos afirmar que Izabel Valle é uma referência para a sociologia brasileira, não somente por causa do mapeamento da produção offshore no PIM e pela dedicação ao debate teórico acerca do que é a Amazônia em contexto de globalização, mas também pela sua luta política em defesa do desenvolvimento social da região, seja pautando este debate na academia e na mídia amazônica, seja estimulando os estudantes a descobrirem novos rumos e sentidos da questão local/global.

Com esse fito, ela escreverá o projeto de formação da Pós-Graduação em Sociologia da UFAM (2007) e será sua primeira coordenadora (2007-2008), formando e orientando uma geração de novos (as) pesquisadores(as) que passarão a atuar, inclusive, como professores do DCIS-UFAM. Ela também será Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UFAM (2000-2004), membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia (2012-2013) e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (desde 2012). Destacam-se, ainda, como parte da sua trajetória o fato de ser a primeira chefe do departamento de Ciências Sociais da UFAM eleita democraticamente e a primeira mulher a presidir a Associação dos Docentes da UFAM (ADUA).

Por fim, cabe aqui um depoimento pessoal. Izabel Valle foi uma orientadora que buscou direcionar os alunos para os diversos caminhos da vida acadêmica: para o compromisso da ciência com as causas da sociedade e sua transformação, para a pesquisa empírica e teórica, para a participação em eventos (não poucas vezes ajudando-os com os custos de passagens e hospedagens) e para a inserção deles na organização de congressos, publicações de artigos científicos e atuação na vida pública. Como seu orientado desde o PIBIC até o Mestrado em Sociologia, posso dizer que estar com a professora Izabel Valle não era apenas uma orientação, mas um aprendizado sobre o escrever, o articular ideias e sobre o próprio fazer sociologia com compromisso social. Suas aulas, palestras e sua energia contagiavam a todos, o que fazia a ciência ser para nós não somente uma questão de vocação e ofício, mas também de prazer e alegria.

Sugestões de obras da autora:

DANTAS, T. B.; VALLE, M. I. M. Visões constitucionais interdisciplinares. 1. ed. Rio de Janeiro: Ágora 21, 2019.

LIMA, J. C.; VALLE, M.I.M.V. Espaços da Globalização: Manaus e as fábricas na Amazônia. Contemporânea. – Revista de Sociologia da UFSCar. Dossiê Processos de Territorialização e Identidades Sociais. 1 ed. São Carlos – SP; Manaus: Rima; EDUA, 2013, v. 3, Jan-Jun. 2013, p. 73-88.

MACIEL, C. F.; VALLE, M. I. M.; MOURA, J. M. B. Caminhos cruzados: relação entre empresa, trabalhadores e sindicato em Polo oleiro-cerâmico da Região Metropolitana de Manaus-AM. Novos Cadernos NAEA, v. 16, p. 127-162, 2013.

OLIVEIRA, M. A. A. ; VALLE, M. I. M. . As Redes Sociais e as Atividades informais no Centro de Manaus. Revista Contemporânea. Dossiê Processos de Territorialização e Identidades Sociais. 1 ed. São Carlos – SP; Manaus – AM: Rima; Edua, 2012, v. 2, p. 147-161.

ANDRADE, A. S. ; VALLE, M. I. M. . Modelo japonês e práticas de gestão na indústria de veículos sobre duas rodas no Brasil: um estudo de caso. Novos Cadernos NAEA, v. 14, p. 141-170, 2011.

VALLE, M. I. M.. Inovação tecnológica e qualificação profissional. In: Selma Baçal. (Org.). Trabalho, Educação, Empregabilidade e Gênero. 1ªed.Manaus: EDUA, 2009, v. 1000, p. 31-46.

VALLE, Izabel. Globalização e reestruturação produtiva: um estudo sobre a produção offshore em Manaus. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.

VALLE, M. I. M.. Produção flexível: um novo paradigma industrial? Revista de Geografia da Universidade do Amazonas, Amazonas, v. 2, p. 93-117, 2000.

Sobre a autora:

Entrevista com Maria Izabel de Medeiros Valle. Maciel, C. F.; Andrade, A. S. Formação sociológica em tempos de ditadura. In: Revista Elaborar. Ano 1, n.1, 2013, p. 118-123.