Maria Célia Paoli

Por Cibele Saliba Rizek (USP/UFSCar)

Maria Célia Pinheiro Machado Paoli foi uma socióloga curiosa, inquieta. Tinha ideias e intuições que a dirigiam para uma centena de focos e olhares ao mesmo tempo. Essa inquietação e essa multiplicidade de interesses era uma enorme qualidade, um impulso vital e, também, na mesma proporção, um obstáculo, sobretudo à sistematização desses insights, ideias, iluminações. Trazia essa riqueza de apontamentos e questões para as aulas – fonte inesgotável de diálogo e de reflexão – o que permitia a quem quer que estivesse em sala acompanhar seu pensamento como uma espécie de aventura sem ponto de repouso. Por isso as disciplinas sob sua responsabilidade eram frequentadas por um grande número de estudantes, orientandos, ouvintes. Essa longa aventura de 40 anos foi, pouco a pouco, esmaecendo. Sem que ninguém percebesse ou se desse conta do que estava de fato em curso, Maria Célia ia adoecendo devagar. Sempre tinha esquecido chaves, livros e papéis… fazia parte dela uma espécie de desatenção às coisas miúdas. Mas esses esquecimentos foram se ampliando, abrindo fendas que eram preenchidas pela riqueza das imagens e das palavras de que era dona.

Por quatro décadas – interrompidas por uma passagem pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo na gestão Luiza Erundina, Maria Célia Paoli formou muitos intelectuais, professores, pesquisadores, transmitindo e recriando linhagens. Uma delas – de grande importância para a renovação dos estudos sobre o trabalho e as classes sociais – foi resultado dos anos de seu doutorado na Inglaterra, sob a orientação de Eric Hobsbawn. Nesse período teria conhecido e se apaixonado – como era de seu feitio – pela obra de E. P. Thompson, o que a faria aproximar em amálgama as contribuições da história e da historiografia e as da pesquisa sociológica. Um fazer-se classe dos trabalhadores se constituía nesse diálogo que historicizava o olhar sociológico e sociologizava as questões colocadas pela história e pela historiografia. Nesse diapasão escreveu um belo trabalho de doutorado que jamais foi traduzido ou publicado no Brasil. A contribuição da abordagem de Thompson ressoou em textos, cursos, debates como contraponto a um marxismo endurecido pelas determinações, envelhecido pela impossibilidade de ação ou pela palidez das classes como sujeito. A contribuição de Maria Célia se somava aos enfoques renovados pelos “novos personagens” de Eder Sader, mas também pela reflexão densa e cheia de dimensões surpreendentes de Marilena Chauí e dos autores que sua reflexão filosófica introduziria no âmbito da sociologia paulista. Tudo a ver com o novo sindicalismo, com o nascimento do Partido dos Trabalhadores, com o surgimento da Central Única dos Trabalhadores, com o que mais tarde poderia ser denominado como a era das invenções, tal como identificada por Francisco de Oliveira. Além de Thompson, muitas outras paixões a tomaram de assalto: as relações entre público e privado no Brasil, o pensamento social brasileiro e as matrizes da violência como mediação das relações sociais, os temas de pesquisa de cada um de seus orientandos, a elaboração cidadã, as questões da cidadania que nasciam da luta pela democracia no Brasil, democracia permanentemente impedida, truncada, e o pensamento de Hannah Arendt – sua última paixão. Para além das publicações e artigos, sua elaboração conceitual, que ancorava uma sociologia política voltada para as relações sociais brasileiras e suas matrizes, acontecia por meio de uma pesquisa de autores e fontes, da leitura abundante e do discurso em classe. Algumas de suas aulas, como me relataram Gabriel Feltran, José Lira, Joana Barros, Fábio Sanchez, Luiz Jackson entre tantos outros, foram momentos inesquecíveis porque permitiam ver e ouvir o pensamento em ato.

Maria Célia Paoli também foi um exemplo de amizade e de afeto sem que suas opiniões e modos de pensar se impusessem aos seus colegas e orientandos. Um exemplo dessa amizade na diferença foi a relação delicada e densa que manteve com Francisco de Oliveira, na reciprocidade de uma profunda admiração e respeito pelas diferenças que os separavam e os uniam ao mesmo tempo. Ambos fundaram o Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (NEDIC) na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que mais tarde ganharia o estatuto de centro, transformando-se em Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC). Maria Célia adoecia devagar como uma luz intensa que perdia brilho muito lentamente. Mesmo assim seu último texto, publicado em 2006, em diálogo com um conjunto de pesquisas e questões de um lado e em conversa permanente com a filosofia política de Arendt, anunciava os processos que transformariam a cena politica brasileira no pastiche da indistinção.

No curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo, Maria Celia Paoli despontava como uma outsider que vinha do Sul, muito loura, dona de uma imaginação sociológica extravagante. A partir de seu mestrado sobre o fenômeno da marginalidade e de seu ingresso na docência nos anos de chumbo, Maria Célia abraçou a Universidade de São Paulo e a viveu com intensidade. Muitos de seus orientandos estão espalhados por cursos de sociologia do Brasil inteiro, dando continuidade às linhagens que trouxe e reinterpretou à luz dos desenhos e dos meandros que plasmaram as formas de sociabilidade política no Brasil. Depois de um período longo de reclusão, Maria Célia morreu em 2019. Esse país da indistinção, do ranço autoritário que atravessa relações sociais e de poder, desse horror às distâncias, a lenta metamorfose dos engajamentos militantes em ativismos sociais, à luz de uma forte modulação das formas de intervenção empresariais, as formas e fóruns participativos que se tingiam não de politização ou democratização, mas de gestão, de administração tecnicizada da pobreza e amenização tênue da miséria, uma espécie de momento thompsoniano do avesso – um desfazer-se da classe – esses são os temas que povoam sua produção mais recente. Mesmo assim procurava horizontes, continuava apostando em todos e em cada um dos orientandos, continuava embarcando em novas aventuras. Talvez a última de que se tenha notícia tenha sido um grupo de jovens pesquisadores que se identificaram como um coletivo de pós graduandos “em busca da política”. Autonomearam-se como Os Embuscados. À luz da obra de Jacques Rancière procuram, tal como Maria Célia, um horizonte, uma esperança para além do social como gestão da vida, uma outra saída para a invenção, para a ação política, uma nova janela por onde fosse possível entrever a reinvenção do mundo.

Sugestões de obras da autora

PAOLI, M. C. P. M. O mundo do indistinto: sobre gestão, violência e política. In: F. Oliveira; C. Rizek. (Org.). Cidadania e Democracia: o pensamento nas rupturas da política. São Paulo: Editora Vozes, 2007.

PAOLI, M. C. P. M. Invenção e emergência em Chico de OIiveira. In: C. Rizek; W.Romão. (Org.). Franciso de Oliveira: a tarefa da crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

PAOLI, M. C. P. M.; DUARTE, Adriano. São Paulo no Plural: espaços públicos e redes de sociabilidade. In: Paula Porta. (Org.). História da Cidade de São Paulo: A cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2005, v. III, p. 67-92.

PAOLI, M. C. P. M. Os amores citadinos e a ordenação no mundo pária: as mulheres, as canções e seus poetas. In: B. Cavalcanti; H. Starling; J. Eisenberg. (Org.). Decantando a República: Inventário Histórico e Político da Canção Popular Moderna Brasileira. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004, v. 1, p. 67-92.

PAOLI, M. C. P. M. Movimentos Sociais, movimentos republicanos? In: F. T. Silva; M. Naxara; V. Camilotti. (Org.). República, Liberalismo e Democracia. Piracicaba/SP: Editora Unimep, 2003, v. 1, p. 163-191.

PAOLI, M. C. P. M. Empresas e Responsabilidade Social: os enredamentos da cidadania. In: Boaventura Sousa Santos. (Org.). Democratizar e Democracia: os caminhos da democracia participativa. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

PAOLI, M. C. P. M. Dismantling State regulations, Remaking Public Rights: The Dispute for Social Regulation in Brazil. In: Jane Jenson; Boaventura de Sousa Santos. (Org.). Globalizing Institutions (Case studies in regulation and innovation). 1ªed. Aldershot: Ashgate, 2000, p. 105-120.

PAOLI, M. C. P. M.; TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: conflitos e negociações no Brasil contemporâneo. In: S.E. Alvarez; E. Dagnino; A. Escobar. (Org.). Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. 1ªed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

PAOLI, M. C. P. M.. Direitos Humanos e Cidadania: Um Comentário. In: M. C. Paoli. (Org.). Direitos Humanos. 1ed.São Paulo: Editora Brasiliense, 1998, v. 1, p. 50-60.

PAOLI, M. C. P. M.. Rights And Social Justice: Conflicts And Negotitations In Brazil. In: M.C. Paoli; J. Durhan (Org.). Culture of politics/politics of cultures: Latin America Social Movements Revisited. 1ed.Colorado: Boulder, 1997, v. 1, p. 150-180.