Maria Alice Nogueira

Por Maria Amália de Almeida Cunha (UFMG) e
Priscila de Oliveira Coutinho (UFMG)

Uma trajetória sem fronteiras

Esta pequena nota biográfica tem por objetivo sublinhar a originalidade e a fecundidade do legado de Maria Alice de Lima Gomes Nogueira, professora titular no Departamento de Ciências Aplicadas à Educação na Faculdade de Educação da UFMG, que se aposentou no ano de 2020, após décadas de intensa atividade acadêmica. Não deixa de ser também uma homenagem oportuna a uma das maiores estudiosas da obra de Pierre Bourdieu no Brasil, uma vez que ela foi a responsável pela tradução e divulgação de muitos textos daquele que é considerado um dos sociólogos contemporâneos mais expressivos. Para o campo da sociologia da educação, o papel da Maria Alice, tradutora, difusora e estudiosa da sociologia bourdieusiana, é imensurável. A relação com a sociologia francófona explica-se, em parte, pela presença da França em sua história familiar.

Maria Alice Nogueira nasceu na cidade de Santo André/SP. Seu pai era químico industrial da Rhodia Química, cargo que, à época, garantia certa eminência em sua categoria profissional. Trabalhando numa empresa francesa e convivendo com franceses em cargos de chefia, seu pai conhecia relativamente bem a cultura do país. Do pai, herdou não somente o incentivo para o estudo daquela língua estrangeira, mas um conjunto de valores ligados ao que ele entendia como aspectos positivos da cultura francesa, assim como encorajamentos, diretos ou tácitos, para estabelecer uma relação mais estreita com aquele país. O tema da herança e transmissão culturais, então, estudado de maneira intensa e profícua por Maria Alice, fornece elementos centrais para a compreensão de sua própria trajetória. Isso porque antes mesmo de finalizar a graduação em Pedagogia, ela obteve uma bolsa de estudos, financiada pelo Rotary Clube, para concluir a graduação na Universidade de Paris V. O ano era 1971 e o contato com o meio universitário em uma efervescente Paris pós maio de 1968 marca de maneira determinante sua carreira. Antes de concluir a graduação em Ciências da Educação em Paris, seus estudos em sociologia da educação, mediados pelo professor Teófilo de Queiroz Junior, restringiam-se a textos clássicos de Émile Durkheim e à sociologia da educação de Fernando de Azevedo, de modo que uma compreensão mais abrangente e contemporânea da área foi apresentada por aquela que foi sua orientadora em diversos momentos da carreira, a professora Viviane Isambert-Jamati, considerada a grande dama da sociologia da educação francesa da segunda metade do século XX e século XXI. Pode-se dizer que Isambert- Jamati foi uma das responsáveis pelo renascimento e desenvolvimento da sociologia da educação na França, nas décadas de 1960 e 1970. O legado da socióloga está presente na formação de mais de uma dezena de brasileiros e brasileiras orientados por ela. Na primeira temporada na Universidade Paris V, em 1970, cursando Science de l’Éducation, Maria Alice estudou os textos de Karl Marx e teve acesso a diversos autores de teoria marxista, como Lênin e Rosa Luxemburgo, proscritos das universidades brasileiras durante a ditadura militar. O aprofundamento nessa literatura aconteceu nos anos em que preparava sua tese de doutorado, uma análise dos próprios textos de Marx e Engels sobre educação. O trabalho foi publicado em livro pela editora Cortez, em 1990, com o título “Educação, saber, produção em Marx e Engels”.

Sua relação com a França marca o desenvolvimento de toda a sua trajetória acadêmica, perfazendo um trajeto virtuoso que se inicia com o término da sua graduação em Paris V, passando pelo maîtrise, DEA, doutorado e dois pós-doutoramentos. No Doutorado, paralelamente ao desenvolvimento e finalização de sua tese, vivencia a profusão de debates sobre os textos que marcariam definitivamente a sociologia da educação do pós Segunda Guerra Mundial, quais sejam, Os Herdeiros (1964) e A Reprodução (1970), de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, o artigo Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (1970), de L. Althusser, e A escola capitalista na França (1971), de C. Baudelot e R. Establet. Em seguida, já munida do conhecimento dessas obras e vivenciando um período de intensa discussão a respeito das desigualdades educacionais e suas causas, Maria Alice mergulha no universo das pesquisas em educação com enfoque microssociológico, e inicia um longo e profícuo trabalho de tradução e divulgação de obras com essas novas perspectivas de análise.

De volta ao Brasil, sua produção é também marcada por parcerias inter institucionais, como os trabalhos realizados em conjunto com o professor Tomaz Tadeu da Silva (UFRGS), na tradução e publicação dos livros de André Petitat (Produção da escola/produção da Sociedade), de Régine Sirota (A escola primária no cotidiano), de Jean-Claude Forquin (Escola e cultura), e de diversos artigos publicados nos seis números da revista Teoria e Educação, cuja produção é considerada hoje leitura obrigatória no campo da sociologia da educação. A produção em colaboração com pesquisadores de outras instituições se estende até a atualidade, como demonstram as publicações das coletâneas como Família & Escola (2000), Escolarização das Elites (2002); Família, Escola & Juventude (2012), Família & Escola: novas perspectivas de análise (2013) e, mais recentemente, o livro Família, Escola e Desempenho Escolar (previsão de publicação em 2022 , pela Editora da UFMG). Estas produções refletem sobre um tema de análise caro à Maria Alice, qual seja, a reflexão sobre os novos modos de socialização familiar e sua relação com o capital cultural, assim como os efeitos desta relação na transmissão de crenças e disposições.

Desde 1988, é bolsista de produtividade do CNPq, tendo atuado como membro do Comitê da área de Educação de 2009 a 2013. Ao longo da sua carreira, orientou cerca de trinta dissertações de mestrado e vinte teses de doutorado. Entre 2003 e 2004 criou o Grupo de Pesquisa Observatório Sociológico Família e Escola, importante espaço de reflexão, investigação e divulgação sobre essa que se tornou a temática nuclear da obra de Maria Alice.

A professora, autora e pesquisadora também sempre conferiu importância às representações em diferentes espaços institucionais, participando ativamente, seja na coordenação, seja como membro associado, do GT Sociologia da Educação na ANPED e do GT Educação e Sociedade, da SBS, atuando na Coordenação deste GT desde 2005 junto com o Professor Marcio Costa da UFRJ e, desde 2019, com a Professora Mariana Koslinski, também da UFRJ.

Em todos os papéis exercidos na Universidade, da sala de aula a representações na gestão universitária, Maria Alice é conhecida pela simplicidade e gentileza, além do seu compromisso inarredável com todas as questões atinentes à esfera pública, ciosa do seu papel de professora e pesquisadora de uma Universidade Pública.

De maneira sempre discreta e elegante, ajudou a erigir um campo fértil de estudos no âmbito da sociologia da educação no Brasil. Sempre generosa, continua a trabalhar para fortalecer ainda mais este campo, ciente da sua importância e do seu papel na formação de novas gerações.

Sugestão de obras da autora:

NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio Pierre Bourdieu- Escritos de Educação.. Petrópolis: Editora Vozes, 2020, 16ª edição.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Claudio M.M Bourdieu & a Educação.. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

NOGUEIRA, Maria Alice; ROMANELLI, Geraldo; ZAGO, Nadir (organizadores). Família e Escola: trajetória de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 6ª edição.

DAYRELL, Juarez; NOGUEIRA, Maria Alice; RESENDE, Jóse Manuel; VIEIRA, Maria Manuel (organizadores)Família, Escola e Juventude: Olhares cruzados Brasil- Portugal.. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

ROMANELLI, Geraldo; NOGUEIRA, Maria Alice; ZAGO, Nadir (organizadores)Família & Escola- Novas Perspectivas de Análise.. Petrópolis: Editora Vozes, 2013, 1ª edição.

CATANI, Afrânio Mendes; NOGUEIRA, Maria Alice; HEY, Ana Paula (organizadores). Vocabulário Bourdieu.. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017, 1ª edição.