Lucila Scavone

Por Lara Facioli (FURG) e Gisele Rocha Côrtes (UFPB)

Ao decidir cursar Ciências Sociais na ainda pacata Porto Alegre de 1968, Lucila Scavone não tinha a dimensão de como poderia conduzir sua trajetória acadêmica, consolidada, fundamentalmente, no campo de construção de uma sociologia feminista. A pesquisadora relata, em memorial para o concurso de titularidade da UNESP de Araraquara, defendido no ano de 2010, que sentia ecoar, na capital gaúcha e no ambiente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a efervescência política cultural internacional do maio de 1968 francês, dos movimentos estudantis, dos chamados novos movimentos sociais e dos feminismos, solo histórico e epistemológico que comporá as bases de seu pensamento.

Ao contexto de entrada na Universidade somavam-se o clima nacional de ditadura militar pós-64 e a perseguição política aos(às) intelectuais e estudantes de esquerda e às forças de oposição em geral, ambiente histórico que aproximava a participação política estudantil do estudo das Ciências Sociais.

A reflexão sobre a relação entre movimento social e conhecimento científico comprometida com os grupos historicamente subalternizados, em especial, as mulheres, compõe as preocupações de Lucila Scavone, desde a realização de seu trabalho de conclusão do Curso de Graduação, cujo tema acerca dos quilombos na sociedade escravocrata apontava, já naquele momento, para uma preocupação com a pesquisa histórica, qualitativa e engajada.

A pós-graduação no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, em Paris, cujo início se deu no ano de 1974, coincidiu com uma época de significativa efervescência da luta pela legalização do aborto em contexto francês, aprovado por lei em janeiro de 1975. Tal dinâmica marcou, para Lucila, o primeiro contato com o feminismo francês e o europeu. De tal forma estimulada e apaixonada, a socióloga se dedicou a buscar na Sociologia teorias e fundamentos que a auxiliassem a construir a questão social das mulheres como uma problemática para essa área do conhecimento, mesmo que tivesse que enfrentar os revezes do campo científico canônico, aquele que considerava os estudos sobre mulheres e de gênero como “perfumaria” das Ciências Sociais brasileiras.

Nesse sentido, Lucila Scavone problematizou cânones hegemônicos da ciência moderna, assentados no androcentrismo e construiu, ao longo de sua trajetória, sob diferentes vertentes e práxis, quadros de referência de análise das teorias feministas e de gênero.

Sua atuação no movimento social a posiciona em uma fronteira de tensão entre a teoria e a prática política, cujo ponto nodal se dá por meio de sua participação no Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, já antes do início de seu doutorado, grupo que chegou a reunir mais de cem brasileiras (exiladas políticas ou não) associado ao movimento feminista francês.

Para se dedicar às pesquisas empíricas e à própria crítica da produção do conhecimento sociológico, Lucila se debruçou sobre a especialização dos saberes e de seus campos de luta e de poder acerca de aspectos teóricos e metodológicos que problematizam dimensões a respeito da objetividade do conhecimento e da neutralidade científica e se dedicou a recuperar a contribuição da crítica feminista à própria teoria sociológica.

O mestrado, defendido em 1976, na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, cujo título é La participation Politique des femmes au Brésil: une mobilisation conservatrice, buscou compreender a ausência das mulheres nos noticiários de política no Brasil, exceto em situações especiais, como no período das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Em seu doutorado, também defendido na França, nos anos de 1980, Lucila intensificou a compreensão acerca da relação entre as mulheres, a igreja e a sociedade e realizou a interface teórica entre as teorias de Antonio Gramsci, os feminismos marxistas e a Psicanálise.

No período entre 1980 e 1985, Lucila teve uma marcante atuação no nordeste brasileiro, no estado do Maranhão, ao ingressar na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Participou ativamente do Grupo de Mulheres da Ilha de São Luís do Maranhão e, dentre as ricas experiências compartilhadas com mulheres e pesquisadoras da região, publicou o artigo ‘As múltiplas faces da maternidade’, referência para os estudos sobre a maternidade como fenômeno social, e enfatizou as contribuições das mulheres no processo de cuidar e na formação do saber médico.

Em 1988, Lucila seguiu sua trajetória de docente e pesquisadora na Universidade Estadual Júlio Mesquita Filho (UNESP), em Araraquara (SP), no Departamento de Sociologia. Atuou como professora de Sociologia na Graduação e Pós-Graduação, estimulando reflexões e leituras de mundo por meio do olhar e da imaginação sociológica. Priorizou temáticas e linhas de pesquisa vinculadas a gênero, saúde, tecnologias reprodutivas, teorias sociais contemporâneas, métodos de pesquisa, feminismos, maternidade e sexualidades. É pioneira na implantação da disciplina Estudos de Gênero, contribuiu para formar novas gerações de sociólogas feministas, e seu engajamento se expressa também na interlocução constante com órgãos e organizações de mulheres e feministas no município de Araraquara (SP).

Os dois pós-doutorados realizados na França, em 1991 e 2002, depois de ter solidificado sua experiência docente e como pesquisadora no Brasil, conduziram-na ao que seria um tema central em suas pesquisas empíricas: as questões de saúde da mulher e as relações de gênero nas práticas de saúde, por meio de uma articulação entre os campos da Sociologia do Trabalho, da Sociologia da Saúde, da Família e das Relações de Gênero.

Somada à sua trajetória no exterior, o olhar voltado para os problemas nacionais reverberou em pesquisas futuras, por meio de estudos comparativos, como o Acordo Bilateral Institut National Santé Études Recherches Médical (INSERM)/CNPq, com a pesquisa Doenças profissionais: conhecimento-reconhecimento e consequências sociofamiliares. Abordagem comparativa franco-brasileira, o Projeto Norte/Sul Saúde, flexibilidade do trabalho e precarização: abordagem comparativa franco-brasileira, financiado pelo INSERM, e o projeto Estudos de Gênero e Feministas: relações norte e sul.

Dentre os estudos precursores de Lucila Scavone atinentes à saúde, ao gênero e à questão ambiental, destaca-se o projeto ‘Amianto: aspectos sócio-familiares das doenças profissionais – Uma abordagem comparativa franco-brasileira’, que foi realizado no Brasil nos anos de 1995-1997, financiado pelo Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale/França e CNPq/Brasil. A pesquisa, realizada em parceria com pesquisadoras francesas, explicitou a invisibilidade das doenças associadas ao amianto e seus impactos nas famílias e analisou a incidência em mulheres e a interface entre a saúde, o trabalho e as relações de gênero.

O ofício da Sociologia, como artesanato intelectual, tem sido transmitido pela socióloga ao longo de sua trajetória acadêmica e do processo de criação de redes e grupos de pesquisa, com destaque para o grupo NEGAr (Núcleo de Estudos de Gênero de Araraquara). O rigor metodológico se expressa na condução dos processos de orientação atravessados pela construção de ferramentas qualitativas e quantitativas capazes de aprofundar a apreensão do real, tornando visíveis as experiências das interlocutoras e dos interlocutores.

Dentre as influências mobilizadas como referenciais epistemológicos e metodológicos de suas pesquisas, destacam-se: Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, Joan Scott, Danièle Kergoat, Heleieth Saffioti, Judy Wajcman, Gayle Rubin, Donna Haraway, Marisa Correia, Maria Lygia Quartim de Moraes, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Michel Thiollent e Wright Mills.

Lucila é autora de diversos artigos e livros e uma das pioneiras na reflexão a respeito das relações de gênero e das teorias feministas, desde a década de 1970, dedicando-se aos estudos sobre direitos sexuais e reprodutivos, aborto, tecnologias reprodutivas, feminismo, sexualidade, maternidade e violência contra as mulheres.

Por fim, Lucila Scavone, importante pesquisadora e referência feminista da Sociologia brasileira, inspirou e inspira a práxis por uma Sociologia posicionada, engajada e feminista.

Sugestões de obras da autora

SCAVONE, Lucila. Perfil da REF dos anos 1999-2012. Rev. Estud. Fem. [online]. 2013, vol. 21, n.2, p. 587-596. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ref/v21n2/10.pdf. Acesso em: 18 mar. 2021.

SCAVONE, Lucila . Religião nas Revistas Acadêmicas de gênero e feministas. In: Maria José Rosado. (Org.). Gênero, feminismo e religião. Sobre um campo em constituição. 1ed.Rio de Janeiro: Garamond, 2015, v. 1, p. 209-222.

SCAVONE, Lucila. Memória, História e Sociedade. 20. ed. Araraquara: Laboratório Editorial, 2015. v. 1. 220p.

SCAVONE, Lucila. Ciência, Tecnologia e Inovação. 37. ed. Araraquara: Laboratório Editorial, 2014. v. 1. 229p.