Licia do Prado Valladares

Por Bianca Freire-Medeiros (USP)

O nome de Licia do Prado Valladares se confunde com a própria história da sociologia urbana brasileira. Pioneira no estudo sobre as favelas cariocas, Licia é autora de uma obra incontornável para os que pretendem compreender as transformações urbanas desde o ponto de vista da segregação e da desigualdade socioespaciais. É igualmente basilar sua contribuição ao que se poderia chamar de uma “sociologia da sociologia urbana”, com especial destaque para o seu trabalho de resgate e difusão do legado da Escola de Chicago de Antropologia e Sociologia.

Licia nasceu em Salvador, Bahia, no dia 19 de janeiro de 1946. Uma baiana cosmopolita que cresceu bilingue, marcada desde sempre pelos trânsitos transnacionais de sua família de origem. Sua mãe Gisela, judia-americana de origem húngara, formada em Antropologia pela Columbia University, conheceu o baiano José Antonio do Prado Valladares, advogado e ex-aluno de Gilberto Freyre, quando este foi estudar museologia no Brooklyn Museum. A infância de Licia, a primogênita entre três filhas, foi feita de idas e vindas entre Salvador e Nova York, assim como da convivência constante com figuras de renome do círculo artístico e acadêmico de Salvador: Jorge Amado, Mário Cravo, Carybé, Milton Santos. Além de referências intelectuais, eles foram importantes reservas afetivas para a adolescente, quando do falecimento precoce de seu pai em um acidente de avião.

Com o ilustre geógrafo, Licia teve, ainda menina, suas primeiras experiências como “assistente de pesquisa” em excursões pelo interior da Bahia. Anos mais tarde, já cientista social formada pela PUCRio (1964-67), foi novamente a convite de Milton Santos que Licia passou a integrar o projeto Venezuela-11 (Nations Unies et Commission pour le Développement de la Région Nordoriental du Venezuela). Assim que, entre janeiro e agosto de 1969, Licia trocou o Rio de Janeiro, onde morava desde os 17 anos, por Caracas. Antes, porém, iria estagiar na biblioteca do Centro Latino–Americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS). Sem essa experiência talvez Licia Valladares não viesse a se tornar a pesquisadora de talento invejável tanto para o trabalho etnográfico quanto para o manuseio de fontes arquivísticas. Isso porque foi lá que ela conheceu Carlos Alberto de Medina, que havia trabalhado com o Padre Lebret e José Arthur Rios na pesquisa da SAGMACS (Sociedade para Análise Gráfca e Mecanográfca Aplicadas aos Complexos Sociais ), estudo pioneiro sobre as favelas cariocas. Juntos, Medina e Licia escreveram um relatório sobre religião na Rocinha, favela onde a socióloga em formação morou e que segue sendo a principal referência empírica de suas reflexões. Mas também foi no CLAPCS que Licia descobriu o encanto dos acervos de fontes primárias e secundárias, o que teve pelo menos duas implicações bem importantes. Por um lado, tal experiência a inspirou, anos mais tarde, a conceber o UrbanData-Brasil: banco de dados bibliográfico sobre o Brasil Urbano. Por outro, a preparou tanto para realização de balanços da literatura que marcaram o campo, quanto para o manuseio primoroso de arquivos pessoais, de que o trabalho feito a partir dos arquivos de Robert Ezra Park é o exemplo mais recente.

Em fins da década de 1960, Licia começou o Doutorado em Sociologia na Universidade de Toulouse I com uma bolsa de estudos financiada pelo governo francês. Sob orientação de Raymond Ledrut, a pesquisa foi gerada nos deslocamentos entre Toulouse e Londres (onde Licia foi recebida pela antropóloga Ruth Glass no Centre for Urban Studies da UCL), Rocinha e Cidade de Deus. A essa época, ela também passou a frequentar o grupo de estudos de Anthony Leeds, que congregava “estrelas em ascensão”, entre as quais o jovem Luiz Antonio Machado da Silva. O resultado de tantos deslocamentos e interlocuções foi a tese de doutorado defendida em 1974 e que logo se tornou uma das mais influentes referências no campo dos estudos urbanos. Publicada em 1978 com o título “Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro”, a obra passou a integrar a série da Editora Zahar então coordenada pelo antropólogo Gilberto Velho, de quem Licia se tornaria interlocutora intelectual e amiga.

Na volta ao Brasil, Licia trabalhou no Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas(IESAE-FGV) , até receber o convite, pelas mãos de Machado da Silva, para ensinar o curso de sociologia urbana no Instituto Universitário de Pesquisas no Rio de Janeiro (IUPERJ). Seu filho Leonardo, nascido em abril de 1979, ainda não havia completado um ano de idade quando Licia foi integrada ao quadro permanente de professores do IUPERJ, onde assumiria não só as disciplinas relativas aos estudos urbanos, mas também os cursos de metodologia de pesquisa qualitativa. Em outubro de 1980 nasceu Paulo, seu caçula.

Os anos 1980 foram de consolidação do nome de Licia Valladares como figura central dos estudos urbanos. Além de professora convidada da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (EBAPE-FGV, 1983-85) e da École des Hautes Études en Sciences Sociales (1986), Licia organizou as coletâneas “Habitação em Questão” e “Repensando a Habitação no Brasil”, e publicou três balanços da literatura, em três idiomas, que até hoje se mantêm como referências fundamentais: “Infância e Sociedade no Brasil”; “Urban Sociology in Brazil” e “La Recherche Urbaine au Brésil” (1988). Em 1988, Licia Valladares deu início ao trabalho visionário do UrbanData-Brasil, antecipando, em larga medida, as potencialidades das ferramentas de busca bibliográfica que hoje fazem parte do nosso cotidiano de pesquisa. Nos anos seguintes, graças ao financiamento do CNPq e de agências estrangeiras, bem como a parcerias tributárias das várias redes de que participava Licia, o projeto foi se consolidando e gerando meta-análises do campo, com destaque para “Pensando as Favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000: Uma Bibliografia Analítica” (Valladares e Medeiros, 2003). Atualmente vinculado ao Centro de Estudos da Metrópole (USP/CEBRAP) e ao Departamento de Sociologia da USP, o projeto encontra-se sob coordenação de Bianca Freire-Medeiros, que foi bolsista de iniciação científica na primeira das inúmeras equipes de pesquisa que ajudaram a consolidar o projeto.

Os anos 1990 também foram de trânsitos e colaborações diversas, dentro e fora do Brasil, com Licia atuando como professora convidada em diversas instituições: no Instituto de Ciências Sociais/UERJ, Institut Français d’Urbanisme/Université de Paris 8, Institut Universitaire d’Études du Développement, Institut d’Urbanisme de Paris/Université de Paris 12, Central European University (Budapeste). É de 1991 o “Cem Anos Pensando a Pobreza (Urbana) no Brasil”, texto não tão citado, mas considerado por muitos um dos seus melhores escritos, publicado na coletânea “Corporativismo e Desigualdade”, organizada por Renato Boschi.

Em 2000, Licia aposentou-se no Brasil e passou ao quadro de professores colaboradores do IUPERJ. No mesmo ano, publicou o artigo seminal intitulado “A Gênese da Favela Carioca: A Produção Anterior às Ciências Sociais”, na Revista Brasileira de Ciências Sociais. Em 2001, Licia foi professora convidada da Université de Paris 10 Nanterre e, naquele mesmo ano, ela passou em sua Habilitation à diriger des recherches en sociologie – Université Lumière Lyon 2. Um par de anos depois, tornava-se professora da Université des Sciences et Technologies de Lille, onde atuou até se aposentar em 2011.

Graças à sua capacidade de interlocução com instituições e campos disciplinares diversos, Licia Valladares esteve à frente de inúmeras redes de pesquisa internacionais que possibilitaram tanto a mobilidade de acadêmicos estrangeiros em direção ao Brasil quanto à propagação das reflexões aqui produzidas no exterior. Entre esses tantos projetos colaborativos e redes de pesquisas transnacionais, merece destaque o acordo CNPq-CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), coordenado do lado francês pelo sociólogo Edmond Préteceille, com quem Licia veio a se casar em 2005. No mesmo ano, ela lançou uma obra que nasceu clássica: “A invenção da favela: Do mito de origem a favela.com”, cuja versão francesa foi publicada no ano seguinte. Em maio de 2019, foi publicada, pela prestigiosa The University of North Carolina Press, a versão (revista) em inglês. O livro encerra apontando para os desafios de se compreender uma favela globalizada, conectada e feita de uma nova geração que Licia do Prado Valladares irá nomear, em suas pesquisas mais recentes, de “universitários da favela”.

Sugestões de obras da autora

CUNHA, J. B.; VALLADARES, L. do P.; MESQUITA, W. A. B.; SILVA, L. S. da. Encontros com Licia do Prado Valladares: biografia, trajetória acadêmica e reflexões metodológicas sobre o seu trabalho de campo na Rocinha em 1967-1968. Antropolitica – Revista Contemporanea de Antropologia, n. 44, 2 abr. 2019.

VALLADARES, L. do P. (org.) A sociologia urbana de Robert E. Park. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2018.

VALLADARES, L. do P. Educação e Mobilidade Social nas favelas do Rio de Janeiro: o caso dos universitários (graduandos e graduados) das favelas. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, p. 153-172, 2010.

VALLADARES, L. do P. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

VALLADARES, L. do P.; MEDEIROS, L. Pensando as Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. 479p.

VALLADARES, L. do P. A Gênese da Favela Carioca. A produção anterior às Ciências Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 15, n.44, p. 5-34, 2000.

VALLADARES, L. do P. Cem anos pensando a pobreza urbano no Brasil. In: Boschi, Renato. (Org.). Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1991, p. 81-112.