Julia Silvia Guivant

Por Marília Luz David (UFRGS)

Julia Silvia Guivant, nasceu em Bahía Blanca na Argentina. De família judaica, seus avós imigraram da Rússia para a Argentina no final do século XIX e, posteriormente, se instalaram no sul da província de Buenos Aires, onde nasceram seus pais. Sua trajetória na infância e juventude foi marcada por um contexto familiar de vida intelectual muita ativa por conta, em particular, das constantes idas aos cinemas de Bahía Blanca e incentivo à leitura.

Formou-se em Filosofia pela Universidade Nacional del Sur (Argentina) em 1974. Nos anos seguintes, interessou-se principalmente pelo campo da Epistemologia, por obras de autores anarquistas e, no início dos anos de 1970, envolveu-se brevemente com o peronismo em meio ao clima político de euforia no país com esse movimento. Recém-formada, foi contratada brevemente pela Universidade Nacional del Comahue, ainda em 1974. No entanto, foi demitida poucos meses depois com o início das intervenções em universidades argentinas sob o governo de Maria Estela Perón, que assumiu a presidência após a morte de Juan Domingo Perón em julho de 1974.

Em 1976, candidatou-se à especialização em Filosofia Política pela Fundação Bariloche (Argentina) e foi selecionada junto com outros nove candidatos entre 150, em um contexto institucional no qual a pós-graduação era ainda incipiente e que posteriormente seria desestruturada pela ditadura militar com o golpe militar em março daquele ano. Ao retornar a Bahía Blanca em agosto de 1976, durante as férias, descobre que diversos ex-colegas da Universidade Nacional del Sur foram perseguidos e presos, acusados de terrorismo. Depois de ter sua casa invadida e destruída por militares, Julia decide fugir da Argentina para o Brasil. Ao chegar em São Paulo, dirige-se ao CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), onde foi acolhida por pesquisadores/as que lhe ajudaram a se instalar em São Paulo.

Em 1977, ingressa no Mestrado em Sociologia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde defende a dissertação intitulada “A visível Eva Perón e o invisível rol político feminino” em 1980. Em entrevista concedida ao CPDOC , Julia destaca a importância da amizade e parceria intelectual com Mariza Côrrea e o grupo feminista criado por ela e outras professoras na Unicamp que influenciou fortemente o tema de sua dissertação e a levou a rediscutir questões de gênero.

Logo após a defesa da dissertação, ingressa como professora na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde já estava trabalhando seu então marido, Eduardo Viola. Em 1984, Julia e Eduardo vão por um ano como pesquisadores visitantes ao Kellog Institute of Latin American Studies, na Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA). Lá Julia tem contato com uma nova produção feminista, como a obra de Joan Scott, o que faz com que repense a sua dissertação e o papel de Eva Perón para a reprodução do peronismo na Argentina. Em 1986 ingressa no doutorado em Sociologia na Unicamp animada por outras ideias, desta vez relacionadas a questões ambientais. Defende a tese intitulada “A legitimação do uso de agrotóxicos. Um estudo de sociologia ambiental” em 1992, após um período de doutorado-sanduíche no Institute of Behavioral Science, na Universidade de Colorado, em Boulder (EUA).

A trajetória acadêmica de Julia S. Guivant contribuiu para a constituição e consolidação dos campos da Sociologia Ambiental e dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias no Brasil, com estudos pioneiros que interconectam os temas da percepção, construção e governança de riscos ambientais e de novas tecnologias, dos conflitos entre leigos e peritos, das controvérsias científicas, da percepção pública da ciência e do consumo alimentar. Destaca-se que desde 1993 Julia permanece como bolsista de produtividade do CNPq. Na temática dos riscos, suas pesquisas questionaram visões tecnocráticas e simplistas sobre a construção e percepção de riscos (e.g. o modelo do déficit); abordaram a percepção de risco relacionada ao uso de agrotóxicos a partir da perspectiva dos agricultores e de estudos culturais de risco; investigaram as diferentes disputas públicas e formas de governança dos riscos relacionados a novas tecnologias (e.g. transgênicos, nanotecnologia) em perspectiva internacional comparada; além de estabelecer diálogos críticos com a literatura sociológica contemporânea, em especial, com as obras de Ulrich Beck e Anthony Giddens. Nessa temática, sua atuação também tem uma face pública, com destaque para a coordenação de uma experiência piloto de consulta pública sobre novas tecnologias em associação com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e com o CGEE/MCT (Centro de Gestão de Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia), que tomou como modelo o feijão geneticamente modificado resistente ao “mosaico dourado”.

Em seguida, Julia tem se dedicado ao estudo do papel da certificação da soja como parte de iniciativas multistakeholder que emergem no contexto das mudanças climáticas e que promovem inovações de baixo carbono. Essa pesquisa esteve originalmente situada no projeto internacional Cosmoclimate, coordenado por Ulrich Beck, com quem Julia teve uma breve oportunidade de trabalhar durante 2013 e 2014, antes do falecimento de Beck em janeiro de 2015.

Nas pesquisas sobre a relação entre produção e consumo alimentar, desde o início dos anos de 2000, Julia tem argumentado que o Brasil se insere na tendência internacional na qual os supermercados desempenham um papel central na oferta de alimentos orgânicos e, com isso, na conversão de novos consumidores, caracterizados com o perfil ego-trip, em oposição ao ecológico-trip. Entre 2016 e 2020, coordenou um projeto Capes/Nuffic com pesquisadores do Enviromental Policy Group, da Universidade de Wageningen (Holanda), que analisou novas colaborações em redes de fornecimento alimentar em perspectiva comparada entre Brasil e União Europeia. Também coordenou dois projetos de cooperação internacional da Capes, sendo um entre 2006-2010 com o mesmo grupo da Universidade de Wageningen, e outro entre 2010-2013 com o grupo Spiral, da Universidade de Liège (Bélgica). Assim, Julia se destaca por sua inserção internacional que, além da articulação de redes de cooperação científica, conta com a coordenação e participação em projetos com grupos de pesquisa de universidades de países como Inglaterra, Noruega, Alemanha, Estados Unidos e Bélgica. Tais redes e projetos permitiram o desenvolvimento de pesquisas internacionais comparativas, de publicações de referência em Sociologia Ambiental e nos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias, a formação de novos pesquisadores no nível da pós-graduação e graduação a partir de bolsas para intercâmbio de estudantes, a vinda de professores visitantes à UFSC, além da criação de disciplinas na pós-graduação.

Sua atuação profissional compreende ainda a participação em associações profissionais nacionais e internacionais. Durante a década de 1990, Julia atuou no grupo de trabalho “Meio Ambiente e Sociedade” na ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que no início dos anos de 2000 deu origem à ANPPAS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade), da qual foi presidente entre 2008 e 2010. Foi vice-presidente do Comitê de Pesquisa 24 “Ambiente e Sociedade” da ISA (Associação Internacional de Sociologia) entre 2006 e 2010 e é parte da atual diretoria (2021-2023) da ESOCITE (Associação Nacional dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias), entre outras participações.

Em 2018 aposentou-se como professora titular da UFSC, continuando como membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Na UFSC, coordena o IRIS (Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade – https://iris.ufsc.br/), criado em 2002, que agrega discentes no nível de graduação e pós-graduação e pesquisadores colaboradores de outras instituições. Sua atuação como docente inclui a orientação de mais de 60 alunos, entre teses de doutorado, mestrado e graduação.

A trajetória de Julia Guivant é marcada por reflexões que ajudaram a traçar novos horizontes de pesquisa no Brasil e que contribuíram para qualificar o debate público e acadêmico a partir de abordagens inovadoras; pela dedicação ao preparo de novos profissionais ao ouvir suas ideias, instigá-los e proporcionar experiências de formação; e, fundamentalmente, pela motivação, otimismo e abertura ao diálogo, mesmo em contextos desafiadores.

Sugestões de obras da autora:

GUIVANT, Julia S.. A trajetória das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, v. 46, n.2, p. 3-38, 1998.

GUIVANT, Julia S. (Org.); SPAARGAREN, Gert. (Org.); RIAL, Carmen. (Org.). Novas práticas alimentares no mercado global. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010. 332p.

GUIVANT, Julia S.; MACNAGHTEN, Phil. O mito do consenso: uma perspectiva comparativa sobre governança tecnológica. Ambiente e Sociedade, v. 14, p. 89-104, 2011.

GUIVANT, Julia S. Ulrich Beck’s legacy. Ambiente e Sociedade, v. 19, p. 227-238, 2016.

GUIVANT, Julia S. Da controvérsia à certificação: o caso da Round Table of Responsible Soy. In: NEVES, Fabrício; FONSECA, Paulo. (Org.). Tramas epistêmicas e ambientais: Contribuições dos estudos de ciência, tecnologia e sociedade. Rio de Janeiro: Editora 7letras, 2020, p. 15-40.