Irene de Arruda Ribeiro Cardoso

Por Maíra Muhringer Volpe

O ingresso de Irene Cardoso na então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, localizada na rua Maria Antônia, aconteceu semanas antes do golpe de 1964. O seu deslumbramento com aquele estimulante universo logo sofreu um abalo: certa configuração cultural, institucional e acadêmica foi interrompida pela ditadura – e tal interrupção foi problematizada ao longo de seu percurso de investigação na (e da) universidade.

Nascida em doze de setembro de 1945, Irene Cardoso ingressou no curso pedagogia aos dezoito anos e, em seguida, passou a frequentar no período noturno disciplinas das Ciências Sociais. A Maria Antônia fazia parte de seu universo cultural, como uma extensão de seu convívio familiar. Na infância e adolescência, sua casa foi frequentada por professores da Faculdade de Filosofia, pessoas ligadas ao teatro, que iam à Cinemateca e ao Teatro Municipal, intelectuais comunistas, ou seja, cresceu cercada por animadas discussões sobre cultura e política. Sua mãe, vinda de uma abastada família tradicional do interior de São Paulo, e seu pai – médico e simpatizante do Partido Comunista, possuía uma variada biblioteca com livros de filosofia, literatura, sobre cinema e teatro, psicanálise, além de uma vasta discoteca – proporcionaram-lhe uma vivência no espaço cultural de São Paulo nos anos 1950 e 1960.

Diferentemente do que aconteceu com colegas, que ao longo do curso tornavam-se marxistas, Irene afirma que “entrou marxista” dogmática e foi aos poucos conhecendo diferentes autores e perspectivas, como Karl Mannheim e Max Weber, entre outros. Foi também se aproximando das Ciências Sociais e, em 1968, ingressou no programa de pós-graduação após ser entrevistada por Florestan Fernandes. Seus interesses convergiam, naquele momento, a um estudo sobre a USP.

Tornou-se instrutora voluntária em 1970 e, dois anos mais tarde, auxiliar de ensino na vaga de Marialice Foracchi, que havia falecido recentemente. No mesmo período, ingressaram também Maria Célia Paoli, Maria Helena Oliva Augusto, Heloísa Fernandes e Jessita Moutinho. Todas jovens mulheres que auxiliavam o professor José de Souza Martins nas disciplinas obrigatórias. Enquanto a aula expositiva era ministrada pelo professor Martins a toda turma, “as martinetes”, apelido dado pelos alunos, conduziam os seminários, numa segunda parte, a grupos menores. Nessa década, Irene dedicou-se não somente ao ensino, como também à elaboração de sua tese de doutorado A Universidade da Comunhão Paulista (Cortez, 1982). Não se tratava de uma reflexão que se restringiu ao campo da sociologia da educação, como já foi confundida. A pesquisa se voltou ao contexto político de fundação da USP, na década de 1920 até o golpe de Estado de Getúlio Vargas, em 1937, às lutas entre grupos políticos e às disputas ideológicas a respeito de seu projeto de criação. Partia da percepção de um mito liberal-democrático e o contrapunha a um autoritarismo, vindo tanto de fora, da repressão de Estado, quanto de dentro, da estrutura de poder na universidade.

Com a defesa da tese em 1980, pode ministrar no ano seguinte sua primeira disciplina optativa, “Educação e ideologia”, na qual trabalhava autores que não eram considerados sociológicos, como Foucault, Adorno, Reich, Marcuse e Benjamin. O nome da disciplina era um disfarce para conseguir abarcar esses “novos” autores e tentar escapar de certo controle exercido pelo Conselho do Departamento a respeito do que era sociologia.

É nesse período dos anos 1980 que Irene seguiu cursos nas Letras e na Filosofia, bem como participou de alguns grupos de estudo com professores das áreas de letras, história, filosofia e sociologia. Essa visão menos ortodoxa da sociologia, uma perspectiva mais multidisciplinar, marca seu percurso pelo Departamento, por meio de seus cursos na graduação e na pós, bem como em seus textos.

A sala de aula, para Irene, sempre foi um momento de encontro entre ensino e pesquisa – e essa característica de um laboratório de pesquisa era percebida por seus alunos. Suas produções textuais se forjavam também ali, nas discussões teóricas com os estudantes. Seus orientandos, afinados com seu estilo de trabalho intelectual, voltaram-se para temas relacionados à família, escola, universidade, subjetividade e cultura, memória e história. Ainda que pelos corredores o nome de Irene Cardoso fosse associado à “sociologia da universidade”, é com a sociologia da cultura e, posteriormente, uma sociologia histórica, que ela identifica seus trabalhos.

Irene trilhou uma carreira burocrática extensa na Faculdade, ao longo dos anos 1980, participando também de conselhos e comissões que discutiam, ao lado de professores das áreas de exatas, química e biológicas, a construção de normas da avaliação. Ela discordava fortemente de uma avaliação quantitativa, produtivista, dos parâmetros de ensino.

Com um olhar retrospectivo, é possível dizer que Irene Cardoso manteve uma postura, sobretudo, de resistência na universidade por meio das diferentes posições institucionais que ocupou: resistiu à desarticulação promovida pela ditadura – com as aposentadorias compulsórias, exílios, prisões –, assim como resistiu às transformações liberais propostas no período de redemocratização. Guardava valores e princípios experienciados na universidade, antes do golpe, como parâmetros para pensar o presente.

Na década seguinte, decidiu sair de toda a participação administrativa na universidade e no departamento, dedicando-se aos cursos, à pesquisa e à tese de livre-docência, defendida em 1998. Sua tese, Para uma Crítica do Presente (Editora 34, 2001), reuniu quinze ensaios escritos entre 1987 e 1998, por meio dos quais se debruçou sobre sua experiência na Universidade de São Paulo, em 1968, sobre a destruição física e institucional da Maria Antônia.

Poucos anos depois, em 2003, Irene Cardoso se aposentou, restringindo, portanto, suas atividades na Faculdade às aulas na pós-graduação e às orientações. Ademais, a aposentadoria, aos 57 anos, trouxe uma mudança significativa em sua vida: Irene tornou-se psicanalista. Seu percurso de formação, no entanto, trilhado paralelamente à sociologia, foi iniciado muitos anos antes, ainda na década de 1980. Sua pesquisa e escrita mudaram ao longo desse processo psicanalítico. História, sociologia e psicanálise foram sendo articulados em sua produção, como no livro Utopia e Mal-Estar na Cultura: perspectivas psicanalíticas (Hucitec, 1997), fruto de um seminário temático organizado com Paulo Silveira no Programa de Pós-graduação em Sociologia.

O pertencimento à Faculdade de Filosofia foi sempre destacado por Irene Cardoso, em suas falas e escritos, tanto ao se referir ao seu ingresso na Universidade de São Paulo, em 1964, quanto em relação à vida institucional e administrativa. Sua publicação mais recente, Livro Branco Sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia – 2 e 3 de outubro de 1968, traz uma reflexão que aprofunda a compreensão sobre a “batalha da Maria Antônia”, como foi nomeado o conflito com estudantes da Universidade Mackenzie. O livro também traz a documentação, que lhe foi confiada décadas mais tarde por Antônio Candido, relator da comissão formada por professores que, à época, investigou tais acontecimentos.

Com sensibilidade e rigor, Irene se dedicou, a partir de diferentes vértices, a refletir e a elaborar uma potencialidade de desenvolvimento – representada pela Maria Antônia – que ficou soterrada pela ditadura.

Sugestões de obras da autora:

CARDOSO, I. A. R.. A Universidade da Comunhão Paulista. São Paulo: Cortez Editora, 1982.

CARDOSO, I. A. R.; SILVEIRA, P. (Org.). Utopia e Mal-estar na Cultura: perspectivas psicanalíticas. São Paulo: Hucitec, 1997.

CARDOSO, I. A. R.. O arbítrio transfigurado em lei e a tortura política. In: Alípio Freire; Izaías Almada; J.A. de Granville. (Org.). Tiradentes: um Presídio da Ditadura – memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997.

CARDOSO, I. A. R.. Prefácio: Uma crítica do presente. In: Beatriz Sarlo. (Org.). Paisagens Imaginárias – intelectuais, arte, meios de comunicação. São Paulo: EDUSP, 1997.

CARDOSO, I. A. R.. Para uma Crítica do Presente. São Paulo: Curso de Pós-Graduação em Sociologia/Editora 34, 2001.

CARDOSO, I. A. R.; TAVARES, A. (Org.). Livro Branco sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia – 2 e 3 de outubro de 1968. São Paulo: Editora USP/FFLCH, 2018.