Heloísa Rodrigues Fernandes

Por Débora Mazza (UNICAMP) e Afrânio Mendes Catani (USP/UERJ)

Heloísa Rodrigues Fernandes nasceu em São Paulo, em 26 de janeiro de 1946. Graduou-se em Ciências Sociais (1968) pela Universidade de São Paulo (USP). Primogênita de uma prole de cinco mulheres e um homem, cresceu em uma família pequeno burguesa urbana, filha do sociólogo e professor Florestan Fernandes (1920-1995). Mestre (1970), com a dissertação A força pública de São Paulo: origem, determinações e fundamentos históricos (1831-1926) e doutora (1978), com a tese Os militares como categoria social, ambas defendidas sob a orientação de Luiz Pereira, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em 1992, realizou o concurso de Livre Docência com a tese Sintoma social dominante e moralização infantil. Um estudo sobre a educação moral em Émile Durkheim.

Iniciou suas atividades como docente da FFLCH/USP em 1969, tendo lá permanecido 26 anos, atuando na graduação e pós-graduação, orientando mestrados e doutorados. A partir de 2005, com a criação da Escola Nacional Florestan Fernandes em Guararema, São Paulo, atuou junto às lideranças, aos militantes e amigos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, a convite da direção, retomou a docência, privilegiando como temática a vida e a obra de Florestan Fernandes, tendo circulado por vários acampamentos do movimento (FERNANDES, 2005, 2008, 2011). E, como nos escreveu em mensagem enviada, esse trabalho lhe propiciou “um reencontro intelectual e amoroso com meu pai”.

Seu primeiro livro, dedicado à Força Pública do estado de São Paulo, conta com prefácio de Florestan, que apresenta a pesquisadora, a pesquisa e os resultados alcançados. Diz que o livro revela “uma personalidade que não teme o esforço da investigação sociológica rigorosa [indo] da coleta à crítica e à interpretação dos dados, sem desfalecimentos e vacilações” (FERNANDES, 1974, p. 15). Quanto à pesquisa, sugere que o policiamento e a repressão são compreendidos a partir das relações de produção, ou seja, das estruturas econômicas e políticas da sociedade brasileira, de modo que “a instituição policial pudesse ser apreendida como um todo, e vista em ação de reciprocidade com aquelas estruturas e funções resultantes em cada uma das situações históricas fundamentais (a colonial, a imperial e a republicana)”. Dessa forma, para Florestan, a reflexão honra o elenco de professores das Ciências Sociais da USP que vai de “Luiz Pereira, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Marialice Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Gioconda Mussolini e Aziz Simão, a Leôncio Martins Rodrigues, Gabriel Cohn, José de Souza Martins e Carlos Guilherme Mota” (p. 16). Por meio desta abordagem, “policiamento e repressão são colocados […] na sua verdadeira condição de elemento de sustentação e preservação das relações de produção e, portanto, de exploração” (p. 16). Assim, o policial militar, a militarização da polícia e a polícia como instituição, são entendidos em termos do “’modo de ser’ determinado pelo sistema de produção” sem que se perca “os vários graus de intermediação, em que uma relativa autonomia permite à polícia manter várias formas de relação com a sociedade local e nacional e tornar-se, mesmo, relativamente autárquica quanto a determinados fins” (p. 17).

Esta mesma temática comparece em outro livro, Os militares como categoria social, dedicado “a duas pessoas presentes numa só: Vicente e Florestan. A primeira trabalhou muito para se realizar na segunda: não a conheci, embora ela esteja em muitos trechos deste trabalho; a segunda é meu pai” (FERNANDES, 1979, p. 8). Quando Florestan nasceu, sua mãe trabalhava e morava em uma casa de família e houve um conflito de nomes: padrinhos e patrões queriam chamá-lo de Vicente e a mãe de Florestan. A madrinha o apelidou por muitos anos de Vicente, entendendo que Florestan não era nome adequado ao filho da criada.

Organizou a coletânea Wright Mills. Sociologia (1985), tendo como premissa um duplo objeto: “selecionar algumas publicações de uma obra ampla” e “apresentar trabalhos estratégicos para a compreensão do pensamento de Mills ainda não acessíveis em português” (FERNANDES, 1985, Introdução: “Mills, o sociólogo-artesão”, p. 33). Recupera a crítica do autor as principais correntes da sociologia norte-americana, representadas pela “Grande Teoria” de Talcott Parsons, pelo “Empirismo Abstrato” de Paul Lazarsfeld e, ainda, pelo “Pragmatismo Individualista” de John Dewey. Apresenta-nos um Mills que se constituiu como um sociólogo prático, entendendo a sociologia como ferramenta de desalienação dos coletivos. Nesta perspectiva, analisou com profundidade a sociedade estadunidense, indicando que “grande parte do poder e prestígio se baseiam em mentiras e seu interesse autêntico pela verdade se converte numa das poucas posses dos despossuídos” (p. 32). Assim, entende que o artesanato do sociólogo e a promessa da sociologia não se limitam à busca da verdade eminentemente prática, mas incluem a procura de seu destinatário. Isto significa que as palavras devem ser calibradas visando sua influência ativa no debate público (p. 18).

Em Sintoma social dominante e moralização infantil, a autora vê a obra de Émile Durkheim como um projeto de moralização infantil laica visando “analisar o dispositivo pedagógico que ali é construído, apresentado e justificado de modo a sustentar a tese de que esse dispositivo não está comprometido com o ideal da autonomia de cidadãos livres, responsáveis e criadores, mas que, ao contrário, é um substituto […] da moralização cristã, com efeitos similares: identificação com a norma; submissão; demanda de crença no Outro, único a decidir, providencial e onipresentemente, sobre os destinos da vida individual e coletiva. Não é casual, aliás, que as crianças que se tornaram clientes cativas desse dispositivo escolar, público ou privado, também tenham vivido, de modo mais ou menos dramático, uma experiência de negação do seu tempo presente (infância) em nome de um adulto normal, que deveriam vir a ser, num tempo futuro, que lhes é obrigatoriamente antecipado” (FERNANDES, 1994, p. 15- 16). Assim, todas as crianças se tornam carentes de infância quando se entende que a crise da modernidade foi transformada em uma crise da moralidade. Desta forma, reafirmar, hoje, “o direito à educação pública, gratuita, obrigatória, laica, um direito coletivo crescentemente ameaçado juntamente com os escombros do Estado de Bem-Estar, não nos exime de questionar o dispositivo pedagógico disciplinar e de procurar resgatar do passado tantos outros [projetos] comprometidos com a significação da autonomia” (p. 17).

Ainda quando estava vinculada ao Departamento de Sociologia, entre 1984 e 1987 Heloísa aprofundou seu interesse pela psicanálise e frequentou cursos e seminários com Renato Mezan, Ricardo Goldenberg e Oscar Cesarotto. Estimulada por um grupo de estudantes da pós-graduação, organizou ciclo de palestras, posteriormente corporificado na coletânea Tempo do desejo: psicanálise e sociologia (1989), objetivando questionar a cultura atual, “marcada por uma relação com a temporalidade que a torna cativa de um presente perpétuo, pois já não o questiona em nome de promessas não resgatadas do passado e, portanto, se torna impotente na produção de novas utopias”. Por outro lado, realça a questão do tempo do desejo, “que subverte a concepção linear e a causalidade da sucessão que marca muitas correntes do pensamento moderno”, pois na psicanálise não se pode dizer que “o passado causa o presente ou o futuro” sem enunciar imediatamente que “o presente ou o futuro se articulam arquitetados pela temporalidade do desejo” (p. 7). Nessa empreitada, a autora ensaia interfaces entre a sociologia e a psicanálise entendendo que suas relações são de oposição e complementariedade, em decorrência do trabalho de interpretação e do tempo como categoria comum (p.12).

Heloísa fala ainda que dentre as heranças que recebeu do seu pai, “uma delas parece indissipável: a de que o desejo de saber pode realizar-se nos livros; pois, se sempre falta [algo] para saber, o desejo insiste, resiste, persiste, renascendo da sua própria tensão entre o que aspirava e o que realizou. Como toda herança, porém, seu desfrute pode ser pesado; eis porque, quando começa a pesar, recorro à libertação metafórica: uma certa quantidade de livros pode ser retirada das prateleiras refazendo o prazer dos vazios do que resta a saber” (FERNANDES, Memorial apresentado à FFLCH/USP para obtenção do título de livre-docente em Sociologia, 1992, p. 7).

Sugestões de obras da autora:

FERNANDES, Heloísa R. Sintoma social dominante e moralização Infantil: Um estudo sobre a educação moral em Émile Durkheim. São Paulo: EDUSP, 1994.

FERNANDES, Heloísa R. (org.). Tempo do desejo. Psicanálise e Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FERNANDES, Heloísa R. (Org.) Wright Mills: sociologia. São Paulo: Ática, 1985.

FERNANDES, Heloísa R. Os militares como categoria social. São Paulo: Global, 1979.

FERNANDES, Heloísa R. Política e Segurança. Força pública do estado de São Paulo: Fundamentos histórico-sociais. Prefácio Florestan Fernandes. São Paulo: Alfa-Ômega, 1974.

FERNANDES, Heloísa R. Chaves do exílio e portas da esperança, Revista Versões, n. 1, p.11-21, jul.-dez. 2005.

FERNANDES, Heloísa R. Florestan Fernandes, um sociólogo socialista. Antología: Florestan Fernandes – Dominación y desigualdad: el dilema social latinoamericano. Bogotá: Siglo del Hombre Editores/CLACSO, 2008, p.9-35; Buenos Aires: Prometeo Libros/CLACSO, 2008, p. 9-28.

FERNANDES, Heloísa R. Florestan Fernandes, um sociólogo socialista (ed. rev. e ampl.), In FERNANDES, F., Brasil: Em compasso de espera, pequenos escritos políticos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 7-29.

Sobre a autora:

CATANI, Afrânio M. Resenha de Heloisa Rodrigues Fernandes (Org.). Wright Mills: Sociologia. In Revista de Administração de Empresas (RAE), São Paulo, EAESP-FGV, vol. 25, n. 3, p. 85-86, julho-setembro, 1985.