Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins

Por Ileizi Fiorelli Silva (UEL)

A ciência social como projeto de vida

Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins nasceu em Bariri, interior do estado de São Paulo, no dia 12 de janeiro de 1941. Aos seis anos de idade mudou-se para a cidade de São Paulo, onde estudou desde o Primário até a Escola Normal (terminologias da época) na rede pública. Na Escola Normal foi despertada pela sociologia, o que a influenciou escolher o curso de Ciências Sociais na USP (1960-1963). Sua mãe foi costureira e o pai trabalhou em Companhia de Luz e, em São Paulo, foi vendedor da indústria química.

Desde o início da graduação, interessou-se pelos estudos da Sociologia do Trabalho, da Sociologia Industrial e da formação da classe operária. Assim, aproximou-se do Professor Aziz Simão, que a orientou na iniciação científica, no mestrado e no doutorado. Na iniciação cientifica trabalhou como bolsista na pesquisa do seu orientador sobre Sindicato e Estado e iniciou um estudo sobre lideranças sindicais em uma disciplina ministrada pelo Professor Octávio Ianni. Nascia, então, a socióloga do trabalho. Em 1964 foi trabalhar no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) que, a despeito dos constrangimentos que se iniciavam com o Golpe militar, tinha sido reorganizado pelo Prof. José Albertino Rodrigues. Aceitou o convite de Azis Simão para trabalhar na USP no final de 1969, com o compromisso de continuar sua formação na pós-graduação, empreendendo as pesquisas que já desenvolvia sobre operários, sindicatos, liderança e suas relações com Estado e outras dimensões sociais. Aposentou-se em 2003, mas permaneceu como Professora Sênior no Programa de Pós-graduação de Sociologia da USP até 2015.

Podemos conhecer o resultado desse processo de profissionalização e formação da pesquisadora lendo: a) a dissertação intitulada “O Estado e a Burocratização do Sindicato no Brasil”, defendida em 1975 e publicada em livro em 1978; b) a tese de doutorado intitulada “Igreja e Movimento operário no ABC: 1954-1975”, defendida em 1986 e publicada em livro em 1994.

Heloisa Martins faz parte de uma geração que ficou firme, quando seus mestres e líderes foram expulsos da universidade pela Ditadura Militar (1964-1985), pois junto com os que permaneceram na USP, nos anos de 1970 e 1980, lidou com essas perdas e algumas delas fatais, como a da Dra. Maria Alice Foracchi (1929-1972). Continuar o trabalho de pesquisa e de formação dos novos cientistas sociais foi a forma encontrada para honrar esses colegas e amigos. Heloisa tem, então, um traço importante dessa geração: a ciência como projeto de vida, como ética e critério de pensamento em todas as esferas da vida.
Como Heloisa entende a sociologia e as ciências sociais e como entende as questões metodológicas na pesquisa nessas áreas? Para Heloisa todo sociólogo tem que pensar essas questões, não deixando somente para os especialistas-metodólogos. Assim se dedicou a escrever e ensinar a respeito das metodologias de pesquisa considerando como uma tarefa de todo pesquisador. A postura e o pressuposto é o de que todos os grandes cientistas sociais procuraram resolver as técnicas e meios de pesquisa de acordo com os problemas teóricos por eles elaborados. Isso aparece nas pesquisas de mestrado e doutorado de Heloisa, tanto as questões metodológicas como as questões éticas da pesquisa se delineiam nas suas duas investigações que marcaram a sociologia do trabalho e a sociologia das religiões. A ética para ela traduz-se na relação com os sujeitos e grupos investigados, que demanda assumir alguma responsabilidade junto a eles, ou um compromisso com suas causas e com seus problemas em termos sociais e políticos e não apenas sociológicos. A pesquisa buscará a objetividade possível e deverá ser reveladora dos fenômenos sociais, com o máximo de distanciamento e de cuidado com o risco da interferência ideológica. Contudo, a pesquisadora não se furtará em criar laços e envolvimentos que possam contribuir com os grupos estudados. Foi o que ocorreu com suas pesquisas para a tese. Após o término continuou por um longo tempo assessorando o CEDI- Centro Ecumênico de Documentação e Informação, como expressão desse compromisso.

Nas pesquisas realizadas no DIEESE fez várias investigações desde as metodologias quantitativas, sendo que na época realizava os cálculos e construía as tabelas manualmente. Dessa experiência, Heloisa aperfeiçoou o artesanato da pesquisa independente de sua natureza, se qualitativa ou quantitativa, pois dependem de decisões, escolhas, criatividade e intuição do pesquisador bem formado nas teorias e métodos das ciências sociais. Na elaboração da dissertação, criou estratégias de pesquisa junto aos líderes sindicais do ABC para entender o que acontecia com a estrutura sindical, o que ela fazia com seus líderes, bem como o que eles faziam nessa estrutura. As experiências e desafios da pesquisa da tese em que buscou entender a relação do movimento operário com a Igreja Católica de 1954 a 1975, aliou vários recursos para coletar vários tipos de dados documentais e por meio de longas entrevistas. Posteriormente, as pesquisas com os jovens de fábricas em Osasco, elaborou todo um processo de negociação com a gerência para poder entrevistar os jovens trabalhadores, indicando as interferências possíveis nesse modo de acesso ao “objeto” (Martins, 2000). Com isso, ressaltamos que Heloisa Martins construiu passo a passo sua vida, sua trajetória e suas pesquisas, com esforço e com dedicação ao rigor científico.

Heloisa pôde compartilhar suas pesquisas, reflexões e experiências fora do Brasil, na condição de professora visitante junto ao Centre of Latin American Studies da University of Cambridge-Inglaterra, por duas vezes, em 1976 e em 1993-1994.

De volta ao Brasil, nos anos seguintes, dedica-se a pesquisar os processos de terceirização, os jovens no contexto de reestruturação produtiva e os dilemas para a organização sindical. Pesquisas sensíveis que aliam dados quantitativos e qualitativos, por meio da percepção dos trabalhadores e de suas lideranças sindicais.

A aproximação com as questões do ensino das Ciências Sociais e, especialmente, do ensino de Sociologia na Educação Básica, começou quando o Departamento de Sociologia da USP a indicou para a comissão de especialistas do MEC (2000 a 2002), que repensou as Diretrizes Curriculares para os cursos de Ciências Sociais. Foi quando ela pensou no ensino não só na graduação, mas também no Ensino Médio. No processo de elaboração das referidas diretrizes a comissão de especialistas precisou dialogar com as diretrizes para as licenciaturas e enfrentar as demandas de formação de professores. Desde essa chave, Heloisa se envolveu intensamente com os problemas e os desafios em torno dos processos de inserção da sociologia nos currículos do Ensino Médio. O espaço escolhido de atuação para organizar as discussões e as posições dos cientistas sociais envolvidos foi a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Heloisa foi responsável pela proposta de criação da Comissão de Ensino no XII Congresso da SBS – 2005. Em 2007, foi eleita a Primeira vice-presidente dessa entidade e coordenadora da recém-criada comissão (2008-2009). Seria pertinente a pergunta: por que uma intelectual como Heloisa, já aposentada na USP (2003), embora atuante na pós-graduação, com uma carreira reconhecida e estabelecida, viria a trabalhar tanto com um processo tão difícil como foi e é a constituição da sociologia como disciplina escolar na Educação Básica, especialmente no Ensino Médio?

Esse movimento firme de Heloisa Martins nessa frente deve-se à ética científica que desenvolveu em toda a sua trajetória. Ela estava a serviço de nossa ciência e serviu-se dela para escolher as estratégias nos diferentes campos para que as Ciências Sociais se expandissem para públicos mais amplos, mais variados, para além da academia e do campo científico stricto sensu.

Nesse envolvimento liderou a produção dos Cadernos de Sociologia do Estado de São Paulo (2008-2009), coordenou a equipe, corrigiu todos os cadernos elaborados para cada bimestre de cada série, eram três séries no Ensino Médio. Nesses Cadernos encontramos uma primeira tentativa no país de dividir os conteúdos das Ciências Sociais\Sociologia de forma didática, com conteúdo, exercícios, dinâmicas e referências teóricas para cada tema e assunto das aulas. Quando a sociologia se tornou obrigatória para todas as séries do Ensino Médio, entre muitos desafios, um certamente era e é esse: O que e como ensinar? Com quais recursos? O que devemos ensinar na primeira, na segunda e na terceira série do Ensino Médio?

O seu engajamento na organização do Mestrado Profissional de Sociologia em rede nacional (PROFSOCIO) também faz parte do compromisso com a formação de professores para a sociologia na Educação Básica. Entre 2013 e 2015, como Professora Visitante no Programa de Pós-graduação de Sociologia da UEL contribuiu com a SBS e a FUNDAJ para a formulação da proposta do PROFSOCIO, que foi aprovada pela CAPES e está em funcionamento desde 2018.

Essa trajetória de dedicação à sociologia como pesquisadora e professora foi reconhecida e homenageada com o Prêmio “Florestan Fernandes” da SBS, no 17º Congresso Brasileiro de Sociologia, em Porto Alegre, em 2015. Nada mais justo, diante de tantas contribuições decisivas para o avanço da Sociologia nos estudos sobre os trabalhadores, na formação de professores e na qualificação da sociologia como disciplina escolar.

Sugestões de obras da autora:

MARTINS, H. H. T. S. O Estado e a Burocratização do Sindicato no Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Hucitec, 1989, v. 1. 190p

MARTINS, H. H. T. S. Igreja e Movimento Operário no ABC: 1954-1975. 1ª. ed. São Paulo: Hucitec: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1994. v. 1. 256p.

MARTINS, H. H. T. S.; RAMALHO, J. R. (Org.). Terceirização – Diversidade e Negociação no Mundo do Trabalho. 1. ed. São Paulo: Hucitec: CEDI/NETS, 1994. v. 1. 236p

MARTINS, H.H.T. O jovem no mercado de trabalho. In: Revista Brasileira de Educação, no. 5. no. 6, 1997, p.96-109.

MARTINS, H. H. T. S. A juventude no contexto da reestruturação produtiva. In: ABRAMO, H. W; FREITAS, M.V de; SPOSITO, M. P. (orgs.). Juventude em debate. São Paulo: Cortez, 2000.

MARTINS, H. H. T. S.; DWYER, T.; LOURENCO, F.; SOUZA, A. N.; FREHSE, F.; MORAES, A. C.. Proposta Curricular para Sociologia no Ensino Médio. 2008. (Desenvolvimento de material didático ou instrucional – Proposta Curricular para Sociologia).

MARTINS, H. H. T. S. (Org.) Horizontes das Ciências Sociais – Sociologia. 1. ed. São Paulo: Barcarola/Anpocs, 2010. v. 1. 496p.

MARTINS, H. H. T. S. (Org.); Martin, M. E. (Org.). Trabalho e Sindicalismo no Brasil e Argentina. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2012. v. 1. 368p.

MARTINS, H. H. T. S. Os Cursos de Ciências Sociais no Brasil. In: BOMENY, Helena. Ensino de Sociologia na Graduação: perspectivas e desafios. São Paulo: Annablume, 2017, pp59-75.

MARTINS, H. H. T. S. Os Cursos de Licenciatura e a formação de professores de sociologia para o ensino médio. In: SILVA, I.L.F; GONÇALVES, D. N. (orgs.). A Sociologia na Educação Básica. São Paulo: Annablume, 2017, pp205-232.

Sobre a autora:

SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969). 1. ed. São Paulo-SP: Humanitas/Fapesp, 2011. v. 1.