Heleieth Iara Bongiovani Saffioti

Por Maria Aparecida de Moraes Silva (UFSCar)

Uma trajetória não linear e não convencional

Heleieth Iara Bongiovani Saffioti nasceu em 1934 na cidade de Ibirá (SP), localizada na região norte do estado. Menina pobre. Seu pai era pedreiro e sua mãe costureira. Sua formação educacional foi marcada por muitos ziguezagues[1]. Em virtude dos parcos recursos financeiros, a família mudou-se para a cidade vizinha, Auriflama, no período dos seus primeiros anos escolares, interrompendo a continuidade de sua escolarização. Sua mãe, inteligente e perspicaz (segundo suas palavras), enviou-a para a casa de tios em Avaré. Logo em seguida, com o falecimento da tia, a família a reenviou para Itapetininga sob a guarda de outros tios. Aí ela terminou o curso primário. Iniciou o curso ginasial e, novamente, foi transferida para São Paulo, para casa de outras tias. Ingressou na Escola Normal da Praça, o Instituto Estadual Caetano de Campos, situado na Praça da República. Cursou o Normal e, em 1954, concluiu o Aperfeiçoamento, que lhe possibilitou candidatar-se e conseguir o primeiro lugar no Concurso de Cadeira-Prêmio. Com este título, escolheu uma escola em São Paulo, Paulo Setúbal, como professora efetiva. Durante o período no Caetano de Campos, estudava à noite e trabalhava durante o dia, como secretária e também como professora particular em casa de alunos. Em 1956, ingressou no curso de Ciências Sociais na USP, obtendo o comissionamento de seu cargo de professora primária. Em 1956, após um rápido namoro, casa-se com o professor Waldemar Saffioti, químico e físico. Novamente, sua trajetória segue outros rumos. Naquele momento, o professor foi contemplado com uma bolsa de estudos do CNPq para os EUA. Heleieth o acompanha e lá permanecem por um ano. De volta ao Brasil, termina o curso de Ciências Sociais. Em 1961, o professor Saffioti foi convidado para criar o curso de química no Instituto Isolado de Araraquara (mais tarde, UNESP). Em 1962, ela decide mudar-se para Araraquara. Naquele ano, o professor Luís Pereira lecionava na FCL (Faculdade de Ciências e Letras) no curso de pedagogia. Heleieth, mais uma vez, solicita comissionamento de seu cargo, ingressa no curso de Pedagogia, e se torna auxiliar do professor Luís Pereira. Logo em seguida, o professor Luís volta para São Paulo e Heleieth assume seu lugar, ministrando aulas naquele curso. Em 1963 foi criado o curso de Ciências Sociais e ela era, então a única professora de Sociologia da FCL. Aí permanece até 1983, quando se aposenta e retorna a São Paulo. Trabalhou na USP, no curso de Psicologia, como professora visitante, e na PUC, onde permaneceu até 2006.

O enovelamento entre vida e trabalho: Não somos nós que escolhemos o objeto, mas é o objeto que nos escolhe

Em 1964, minha trajetória se cruza com a de Heleieth. Iniciei o curso de Ciências Sociais na FCL e fui contemplada com suas aulas brilhantes durante os quatro anos. Em razão da ditadura, muitos de nossos professores foram perseguidos e, assim, muitas disciplinas eram ministradas por Heleieth, cuja carga de trabalho docente era exaustiva, além da preparação da tese de doutorado, sob a orientação de Florestan Fernandes. Em 1966, em virtude do volume e da qualidade do material, o professor Florestan decidiu que a tese fosse apresentada como livre-docência, defendida em 1967, numa cerimônia inesquecível, sobretudo, para nós, alunos[2]. Tese publicada em livro seminal, A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade, em 1969.

No Brasil, o livro foi considerado como pioneiro na temática feminista. A mulher, até então, à margem dos estudos da sociologia, além de outras disciplinas afins, é trazida para o centro, a partir do enfoque da teoria marxiana. Muitas outras publicações surgiram após este livro/embrião. A obra de Heleieth é extensa e intensa. Ela foi uma intelectual incansável em busca de compreender e construir práticas que desarranjassem o status quo do poder e da dominação, instituídas no entrecruzamento da classe, gênero/raça/etnia. Ademais do rigor teórico/conceitual, sua obra foi ancorada nas práticas dos movimentos feministas contra a violência, o feminicídio, a descriminalização do aborto, o abuso sexual incestuoso, processos cada vez mais brutalizados nestes momentos em que vivemos. Batalhou pela criação das primeiras DDMs, desde 1985. Em 2005, ao lado de outras 49 brasileiras, como Zilda Arns e Luiza Erundina, por integrar o Projeto Mil Mulheres, iniciado por ativistas suíças, foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz pelo reconhecimento do papel feminino nos esforços pela paz.

Uma obra é sempre contextualizada. No entanto, a vida é mais que a obra.

Faleceu em 2010, conversando com o irmão em seu apartamento na Praça da República, dez anos após a morte do professor Waldemar Saffioti.

Sugestões de obras da autora

A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão popular, 2013.

Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão popular, 2019.

Circuito fechado. Abuso sexual incestuoso. In: Mulheres vigiadas e castigadas. CLADEM (Comitê Latino Americano e do Caribe para a defesa dos direitos de mulher, sd. Disponível no blog marxismo21.org.

Novas perspectivas metodológicas de investigação das relações de gênero. In: MORAES SILVA, Maria A. (org.). Mulher em seis tempos. Araraquara, FCL, 1991, pp. 141-170.

Sobre a autora

SORG, Bila. O feminismo adentra a academia. REF, v. 157, n. 1, 1995, pp.1-3.

PINTO, Celi R. Jardim. O feminismo bem-comportado de Heleieth Saffioti (presença do marxismo). REF, v. 22, n.1, 2014, pp. 321-333.


[1] As informações seguintes me foram dadas por ocasião de uma entrevista formal que Heleieth me concedeu em 12/10/1994. Por razões diversas, não publiquei esta entrevista, que faz parte de meu acervo. Mais detalhes de sua trajetória educacional podem ser consultados em entrevistas concedidas no site: https://marxismo21.org/heleieth-saffioti-marxismo-genero-e-feminismo/

[2] Moraes Silva, Maria A. O nascimento de uma obra. REF, v. 3, n. 1, pp. 159-163, 1995.