Gisela Black Taschner

Maria Arminda do Nascimento Arruda (USP)

Amiga, irmã, socióloga pioneira

Creio não ser possível pensar o percurso da socióloga Gisela Black Taschner (05-09-1948/19-08-2012) sem tratar das circunstâncias da sua formação, pessoal, acadêmica e profissional. Nascida em São Paulo em um momento de intensas transformações urbanas, quando a cidade se transformava em metrópole, os problemas de pesquisa construídos por Gisela expressaram a complexidade dos fenômenos produzidos na esteira das promessas civilizatórias contidas nas transformações em curso. Igualmente, a sua origem familiar não foi fortuita na modelagem da sua trajetória e escolhas profissionais.

De origem judaica, filha de mãe nascida na Ucrânia, na região de Odessa, o núcleo familiar materno emigrou para o Brasil quando Mary Black tinha tenra idade. A derrota Menchevique, grupo político dos parentes, possivelmente a retomada do antissemitismo nos primeiros anos da Revolução de Outubro, alimentaram a decisão de emigrar para a Argentina, país rico e florescente no início do século XX, itinerário abandonado, quando o navio aportou no Rio de Janeiro. O ramo materno revelava origem social diferenciada e cultivada; oriundo do comércio de grãos, professava a crença liberal da liberdade individual e do mérito pessoal, valores que facultaram a ampliação do arco de convivência da família, marcada pelo cultivo de amizades para além da comunidade judaica de São Paulo. O pai, nascido em Berlim, imigrante de última hora na conjuntura das perseguições nazistas, chegou ao Brasil em 1938, com pouco mais de vinte anos. O único do seu núcleo a conseguir o visto de saída, conviveu com o drama de ser sobrevivente exclusivo do seu círculo íntimo, pois sequer teve notícias do destino dos parentes. Rudolf Taschner originava-se de familiares totalmente assimilados e identificados com a cultura da classe média urbana alemã, condição que não o protegeu da barbárie reinante.

A tradição urbana embebida na cultura liberal foi parte integrante da socialização primária de Gisela, assim como o seu percurso escolar reproduziu o caminho dos filhos dos estratos médios afluentes da capital paulista: a Escola Caetano de Campos e o Colégio Rio Branco, duas instituições reconhecidas pela excelência do ensino, a despeito da condição pública da primeira e do caráter privado da segunda, formação que foi adensada no período de estágio nos Estados Unidos, durante o último ano letivo do então colegial, vivência que a singularizava, dada a experiência internacional em um ambiente estudantil de feitio provinciano. O conhecimento do idioma inglês a diferenciou entre os colegas do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo – USP, que seguiam a tradição herdada de domínio do francês, ainda persistente naqueles anos finais da década de 1960. A sua desenvoltura na língua inglesa conformou a facilidade com que frequentava os ambientes acadêmicos estrangeiros, valor em expansão no meio universitário, nos últimos decênios do século XX.

Nessas circunstâncias, a socióloga teve acesso, no período crucial de aprendizagem, à mais aprimorada educação disponível no momento e viveu numa cidade em franca modernização, na qual o consumo material, cultural e simbólico diferenciava-se e democratizava-se, trazendo no seu bojo promessas civilizatórias até então inusuais. Já durante o curso universitário (1967-1970), defrontou-se com os ditames do regime autoritário instalado em 1964, que coibiu todas as liberdades e anulou direitos, especialmente a partir da promulgação do AI5 em 1968. Esta geração foi prisioneira dos limites instituídos e compungida a conviver com as perseguições políticas, torturas e mortes, inclusive de colegas. Os ares da contracultura aqui aportados na mesma época serviam de respiradouros em meio à mudança radical dos costumes, levada à frente por esses jovens sequiosos de liberdade, seja política, seja cultural, seja ainda por meio da combinação das duas.

Enquanto pesquisadora, Gisela formulou problemas e construiu objetos sintonizados com essa experiência; como socióloga, analisou e refletiu sobre a dinâmica da modernização capitalista e os seus impasses em contexto de realização periférica e politicamente autoritária. Encontra-se subjacente à sua obra, a pergunta sobre os motivos da realização imperfeita da moderna sociedade no Brasil, questão que lhe obrigou examinar a dinâmica nos países capitalistas localizados no centro do sistema. Em outros termos, buscou elucidar as razões responsáveis pelo nosso déficit civilizatório. Não por casualidade, seus temas identificam-se com as formas avançadas da modernização; arriscaria dizer por certo desconforto com a vida em sociedades da periferia moderna. Pensando o conjunto da sua obra, é possível afirmar que percorreu a sua reflexão o problema das restrições da cidadania no Brasil.
Nos temas e objetos que contemplou, a socióloga se indagou – e até perseguiu – as formas de expressão da cidadania entre nós, numa atitude que combinava perplexidade diante da carência de universalização dos direitos, à esperança de encontrar a sua presença nos desvãos do meio adverso. Não por casualidade, o seu último livro – Cultura, Consumo e Cidadania -, editado em 2009 e fruto da tese de livre-docência defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 2007, durante o período no qual sobrepôs ao vínculo permanente com a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo as aulas na USP. A publicação é uma espécie de coroamento das suas pesquisas sobre cultura, indústria cultural, cultura de massas, consumo, lazer e entretenimento. Já nas primeiras páginas do livro, a autora adverte sobre a profundidade das mudanças ocorridas nas sociedades ocidentais que “podem ser indícios de uma nova etapa no processo (in) civilizador” (p.11).

Por que Gisela oscila entre pensar o momento no crivo da ambiguidade civilizatória que configura o presente estágio? Parece-me que a chave explicativa para tal juízo deriva do reconhecimento de uma cidadania mediada pelo mercado, tornando-se elemento fundamental da reprodução social. Explicitamente, a cidadania – que era na origem afirmação civilizatória de direitos e resistência frente à exploração capitalista desabrida – havia sido aprisionada no desenvolvimento da teia mercantil, cujo desdobramento é o customer lifetime value. Em outros termos, a cidadania mercantilizada aparece travestida na roupagem dos direitos do consumidor que, a um só tempo se afirmam como valor positivo na contemporaneidade, portanto, são respiradouros frente às formas abstratas de domínio das relações de mercado, não obstante se exprimam por intermédio da troca das mercadorias. Percebe-se que Gisela está inspirada nas concepções provenientes da tradição frankfurtiana sobre a indústria cultural e as revelações objetivadas da cultura, à qual combina as chamadas teorias das sociedades pós-industriais, cujo correlato no plano societário é a pós-modernidade, da cultura o pós-modernismo.

Eis aqui o cerne dos problemas construídos pela socióloga, e que estão longe de serem triviais, sintetizados na categoria cidadania mercantil que, a despeito da sua fragilidade, permitiu o surgimento da “revolução do consumidor” e o aparecimento da terceira geração conhecida como dos “novos direitos”, que “dizem respeito a interesses difusos, como os referentes ao meio ambiente, à qualidade de vida, aos consumidores, às mulheres, às crianças e adolescentes, à terceira idade, aos homossexuais, às minorias étnicas etc. Eles têm não o indivíduo, mas determinados segmentos sociais como titulares e vêm sendo acrescidos de outros (quarta geração) ainda em discussão, ligados ao que tem sido definido como bioética (uso de células-tronco, clonagens, eutanásia etc.)” (p. 20). A socióloga antecipou questões que hoje estão presentes na pauta diversificada dos direitos e das identidades. Não por casualidade, a obra discute as relações entre consumo, indústria cultural, lazer e turismo como fenômenos privilegiados para enfrentar o problema analítico central. Preserva, entretanto, a consciência da sua complexidade, movimentando-se em terreno movediço, que “aponta para a possibilidade de constituição de um novo sujeito capaz de levar adiante as transformações sociais em direção a uma sociedade mais justa e humanizada, que o proletariado não quis ou não pode realizar. Nesse último caso, poderemos ter novamente um horizonte de esperança” (p.187).

Os seus livros anteriores – Do Jornalismo Político à Indústria Cultural, publicado em 1978 e originado do mestrado em Sociologia defendido na USP no mesmo ano, seguido de Folhas ao Vento, Análise de um Conglomerado Jornalístico no Brasil, publicado em 1992 e resultado do doutorado defendido em 1987 na mesma instituição, têm como centro de análise a imprensa e o seu processo de transformação em veículos informativos moldados pelos ditames da indústria cultural. O primeiro, analisa sobretudo o jornal Notícias Populares classificado como imprensa marrom e o compara ao Última Hora, publicação eminentemente opinativa, indagando-se sobre a lógica subjacente à produção das respectivas mensagens e as suas conexões com as questões políticas e sociais do país. A originalidade do tratamento comparativo lhe permitiu tanto situar as conjunturas diversas de surgimento, o primeiro em 1963 e o segundo em 1951, quanto as suas similitudes, pois ambos foram pensados no bojo de motivações políticas. Notícias Populares, criado pelo grupo Herbert Levy, liderança conservadora em São Paulo, continha mensagens de nítido caráter político subliminar, presente na dominância do noticiário policial; Última Hora, fundado por Samuel Wainer no calor da eleição do segundo Governo Getúlio Vargas, notabilizou-se por privilegiar as questões eminentemente políticas, especialmente por criticar os grupos mais conservadores. Concebidos segundo formato de empresas, os diários submeteram a lógica empresarial à política, a “ela se subordinaram as demais características” (p.154), levando à crise financeira e à venda, em 1965, ao grupo jornalístico emergente da Folha de São Paulo, conglomerado característico de indústria cultural.

Folhas ao Vento representou o desfecho das pesquisas sobre o jornalismo, espécie de culminância das suas preocupações sobre o tema, quando o perfil integralmente empresarial do jornal pôde ser caracterizado, na sequência do exame dos dois diários. “As Folhas, por terem assumido claramente uma lógica empresarial e por não terem firmado tradição de uma linha editorial politicamente unívoca nem compromissos ideológicos muito precisos (a não ser um período determinado, em seu passado), puderam levar essa lógica a suas últimas consequências – quase paroxismo – e explorar virtualmente, com base nela, todas as oportunidades que o período aberto na década de 60 apresentou para a sua consolidação” (p.199). Nos termos da autora, a reconstrução da história do jornal permitiu-lhe analisar a constituição de um complexo jornalístico de indústria cultural, atributo que passou a orientar a produção das mensagens. Os livros sobre a imprensa retrataram o escopo das preocupações analíticas perseguidas por Gisela, mas não se desprendiam dos valores recebidos na sua socialização primária, baseada no cultivo dos princípios modelares da modernidade.

A geração a qual pertencemos e que se formou em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo naquele tempo foi herdeira da tradição do chamado marxismo acadêmico, representado pelos jovens professores que organizaram o Seminário de Marx, cujo propósito fundamental era o de ler sistematicamente O Capital, independente dos seus intérpretes. Nos nossos anos de faculdade, o ambiente era dominado pelo marxismo e os seus desdobramentos interpretativos. Apesar de não ser teoria exclusiva, tampouco unívoca, foi componente inexcedível da nossa formação, uma vez que o debate intelectual não se desprendia das questões políticas. O período ditatorial era êmulo dos estudos críticos, mas punha no centro das nossas preocupações a necessidade de entender a regressão reinante. O aprofundamento da modernização conservadora imposta pelo regime desafiava os cânones assentados, que se tornavam explicativamente discutíveis diante da adesão ao regime de setores das classes médias urbanas e mesmo populares. A busca de entender o comportamento aderente, especialmente das classes trabalhadoras, era o nosso desafio.

A expansão dos modernos veículos de comunicação, especialmente a convivência e o fascínio exercido pelas mensagens da televisão, inquiriam os novos cientistas sociais, promovendo a identificação entre indústria cultural e autoritarismo. A concepção sobre o caráter ideologicamente orientado da mídia, coincidente com a criação do Sistema Globo de Comunicação, estimulava as reflexões sobre as teorias da reprodução cultural materialmente imantadas. De outro lado, a reflexão da Teoria Crítica – que se situava no universo da tradição da dialética – permitia repensar o marxismo no prisma da cultura e os seus impasses frente à modernização que se processava. Em outros termos, um processo moderno se realizava no prisma do conservadorismo político, socialmente excludente, cujo dinamismo econômico obrigava ao reposicionamento das pesquisas sobre a modernidade brasileira.

Os estudos sobre a indústria cultural elaborados pela tradição frankfurtiana respondiam adequadamente aos problemas analíticos e equacionavam as perguntas construídas pelas pesquisas sobre esses novos objetos. Creio que os livros de Gisela a respeito do jornalismo respondem de modo criativo a essas questões, diagnóstico que se combina às inquietações originadas no núcleo familiar: a crença na vocação liberal da imprensa, o seu nexo com a democracia e a constituição da cidadania. Finalmente, a reflexão busca responder às especificidades do jornalismo brasileiro que não seguiu a deontologia reconhecida da profissão, visto que a modernização do setor ocorreu sob o formato de indústria cultural, cujos efeitos manifestavam-se na modelagem da informação segundo a sua lógica, afastando-se do papel comumente atribuído à imprensa.

Gisela Black Taschner desenvolveu a sua carreira na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, na qual atingiu o cargo de Professora Titular em 1994 e ocupou posições centrais na instituição: coordenou o Núcleo de Pesquisas e Publicações, tornando-se responsável pela edição da Revista de Administração de Empresas – RAE -; foi Pró-Reitora de Pesquisa; participou da Câmara Técnica de Turismo da Fundação Procon; esteve como professora visitante na Universidade de Londres e na Universidade de Texas, em Austin. A vivência da condição de socióloga em uma escola de administração apurou a sua sensibilidade para os fenômenos produzidos na esfera mercantil, cujo peso relativo não se pode inequivocamente aquilatar. É certo, porém, que esse conjunto de vivências inspirou a sua imaginação sociológica e construiu um repositório rico de referências a ser desenvolvido pelas novas gerações. O seu falecimento precoce deixou um projeto sociológico em pleno florescimento. Casou-se duas vezes, a primeira com um médico, pai das suas três filhas; a segunda, com um colega da Fundação Getúlio Vargas. Deixou um imenso legado e muita saudade em todos nós que convivemos com ela. Em mim, especialmente, restou um vazio sem nenhuma possibilidade de superação.

Sugestões de obras da autora:

TASCHNER, Gisela Black. Do Jornalismo Político à Indústria Cultural. São Paulo, Summus, 1987.

TASCHNER, Gisela Black. Folhas ao Vento: Análise de um Conglomerado Jornalístico no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

TASCHNER, Gisela Black. Cultura, Consumo e Cidadania. Bauru. Edusc. 2009.