Fernando Mota

Por Luciano Oliveira (UFPE)

Antonio Fernando da Mota Lima – Fernando Mota – nasceu em Igarapeba, na zona da mata pernambucana, em 3 de outubro de 1948, e faleceu em Recife, numa noite profunda entre 18 e 19 de julho de 2017, quando abriu o gás da cozinha do apartamento onde morava.

Sem chegar a ser um latifundiário, seu pai era plantador de cana, e Fernando chegou a ser um “menino de engenho”. Bem mais tarde, já professor e intelectual reconhecido, nutria uma indisfarçável antipatia pelo lado “proustiano” do romancista paraibano, responsável a seu ver por uma edulcoração da miséria social e humana reinante nos ambientes em que se criavam (juntos até que a idade e a condição social os separassem) os moleques do eito e os filhinhos de papais plantadores de cana. Já era adolescente quando a família perdeu os haveres em Igarapeba e conheceu a pobreza no Recife, para onde todos se mudaram. A leitura o salvou: “Os livros foram meus agentes civilizadores, também os modelos éticos incogitáveis no ambiente em que vivi” – escreveu ele nas “Memórias de um Leitor”, uma série de textos que escreveu num blog que manteve nos últimos anos da vida, destilando ensaios que obreiam em fineza e erudição com os dos nossos melhores críticos literários e sociólogos da cultura. Tinha como modelo Antonio Candido, seu “imortal preferido”, como escreveu por ocasião da morte deste último. O Brasil profundo e suas iniquidades de um modo geral, e as “igarapebas” em particular, lhe davam repulsa. Gostava de citar Antônio Callado, para quem “a única vocação de grandeza do Brasil é geográfica”.

Adulto, trabalhou como operário e ingressou no curso de Direito, que logo abandonou. Outra era sua vocação. Tanto que mudou de endereço e graduou-se em letras. Leitor voraz, era um intelectual formado na tradição dos grandes humanistas como Shakespeare, Montaigne e Cervantes, os nomes que primeiro lhe “vieram à memória” quando publicou uma lista dos autores que mais lhe importaram na vida. Nela também compareciam Machado de Assis e Mário de Andrade. Deste, admitia, a admiração era menos pela obra do que pela missão que o paulista se dera de modernizar a cultura do país e de pôr-se a serviço dos jovens talentos. Em 1980, entrou por concurso na Universidade Federal de Pernambuco, no departamento de Sociologia, e aí deu aulas até se aposentar. Mário de Andrade, precisamente, foi o “objeto” de uma dissertação de mestrado que defendeu na mesma universidade, em 1985, com o título sugestivo de Brasil or not Brésil. Como nunca escondeu, escreveu-a apenas por uma obrigação funcional, “em uma semana” – como dizia, e como os amigos que conheciam sua capacidade de escrita nunca duvidaram.

Antes de virar professor universitário, porém, viveu de “bicos”: aplicou questionários em pesquisas que nada lhe diziam, deu aulas em colégios e cursinhos de pré-vestibular que também lhe diziam pouco etc. E perambulou pela cena cultural recifense nos 70, onde participou de vários e efêmeros empreendimentos de que ficou como exemplo a revista Cenoura – o título era o nome de uma cachorrinha de um dos fundadores –, uma mistura de vanguardismo, deboche e, de contrabando, marxismo, como era comum naqueles “tempos sombrios”. Escreveu muito, atividade que exercia quase cotidianamente, sobretudo cartas (outra proximidade com o correspondente obsessivo que era Mário de Andrade), mas não deixou livros – exceto, em 1981, uma pequena coletânea (Feira de Retalhos) juntando textos de crítica cultural selecionados entre as centenas que ficaram e continuam dispersos por aí. Para surpresa dos amigos, não compareceu ao lançamento!

Entre os anos 80 e 90, Fernando exerceu com uma dedicação que tinha algo de “missão” sua vocação de professor. Mais do que alunos ele queria discípulos. Não no sentido de seguidores em busca de uma doutrina de salvação do mundo, que ele não tinha, mas como pessoas que, como ele, queriam se civilizar. Foi um professor old fashion way, aquele sujeito que, como o personagem alcoólatra e desabusado de Michael Caine no filme O Despertar de Rita, que ele adorava, era um erudito querendo iniciar as pessoas simples – como Rita – nos tesouros da “alta cultura”, algo de cuja existência, em oposição à “baixa cultura” da indústria cultural, ele nunca duvidou. E, mesmo se não foram legião, ele os teve. Muitos, dos bons, aqueles que superam os mestres: da UFPE em Recife à UCLA, na Califórnia, e à UNICAMP, em São Paulo, eles estão por aí, educando.

A partir de certo momento, já nos anos 2000, Fernando foi perdendo o entusiasmo e se ensimesmando. Veio o famoso “Capes way of life” pairando cada vez mais como uma intimidação na universidade brasileira: instalou-se, num regime de concorrência, o princípio do publish or perish em publicações “Qualis A” (a “B” ainda se tolera…), e os professores começaram a acumular pós-doutorados. A atividade propriamente docente (sobretudo na graduação, que era o seu forte), passou a ser desvalorizada, e ensinar a jovens que adentram o ensino superior – o jogo de palavras é inevitável – tornou-se uma atividade inferior. Afora isso, um clima cultural hostil às hierarquias de um modo geral tornou-o um professor que detestava os alunos enquanto massa constituída por sujeitos indolentes e indiferentes ao idiota se esgoelando na sua frente. Alunos de bermuda, ou, pior, consultando seus smarts em plena aula, punham-no em furor. Mas, mesmo nos últimos anos, desde que alguma alma perdida se interessasse pelo que ele dizia, Fernando Mota se desfazia em entrega.

Aposentado e cada vez mais só, a companhia de Montaigne já não era suficiente. Como ensinou Tolstói (outra de suas predileções) n´A Morte de Ivan Ilitch, o sujeito que sente dores precisa de alguém para acariciar seus pés. Em 2017, escreveu: “É difícil suportar a doença quando se vive só e habituado a cuidar de si próprio”. A dependência cada vez maior para ir a médicos, fisioterapeutas e acupunturistas (tudo em vão) parecia-lhe um fardo demasiadamente pesado tanto para ele quanto para os que o ajudavam, e certa vez disse que não iria “suportar a piedade dos amigos”. Dois dias antes de se matar publicou um texto chamado A Sensação de Morrer, que descreveu como “a maior sensação de serenidade e paz que senti na minha vida.”