Antônio Luiz Machado Neto

Por Paulo Cesar Alves (UFBA)

Professor titular, por concurso de títulos, nos Departamentos de Direito Público e de Sociologia (1963 na UNB e em 1971, UFBA), Antônio Luiz Machado Neto nasceu em Salvador (1930) e faleceu aos 47 anos (17/07/1977), deixando um legado intelectual considerável. Em um espaço de 23 anos publicou 32 livros e mais de 80 artigos em revistas nacionais e estrangeiras, além de exercer uma forte atuação no mundo acadêmico. Ao longo da sua vida manteve intensa correspondência com vários filósofos e cientistas sociais brasileiros, europeus e americanos. Em 1973 foi eleito para a Academia Baiana de Letras.

Filho único – seu pai, de origem portuguesa, era proprietário de uma pequena butique no centro da cidade e a mãe, descendente direto de espanhol, confeccionava chapéus femininos – graduou-se na UFBA em Direito (1953) e em Ciências Sociais (1958). Obteve dois doutoramentos na forma de concursos à Livre Docência (Direito e Sociologia). Sua carreira como professor universitário começou em 1958 (UFBA), ministrando a disciplina “Introdução ao Estudo de Direito”. A convite de Darcy Ribeiro, tornou-se docente (1962) na recém-criada UNB e foi indicado (1965) para dirigir o Instituto Central de Ciências Humanas (1965), ano em que foi demitido em decorrência do golpe militar. Retornando à UFBA, foi convidado pelo reitor Roberto Santos a elaborar e coordenar o Mestrado em Ciências Humanas (1968), um dos primeiros cursos de pós-graduação no país.

Uma característica importante de sua vida intelectual foi o seu ativo e constante engajamento na formação de agremiações literárias-artísticas e, posteriormente, de grupos de pesquisa. Um “homo theoreticus”. Como observa Marília Muricy, que foi sua principal assistente na Faculdade de Direito da UFBA (http://iusfilosofiamundolatino.ua.es, acesso em 06/01/2022) “A vida intelectual era, para ele, a vida por inteiro; muito mais que um lugar de poder, um espaço em que caminhavam juntos a responsabilidade moral de abrir-se para o mundo e o gozo constante da descoberta de um novo caminho, uma nova indagação”.

Como aluno no Colégio da Bahia (o “Central”), muito prestigiado na época, participou na fundação do “Caderno da Bahia”, revista estudantil de vanguarda (1948-51) que agrupou um conjunto de jovens artistas e intelectuais, como Luís Henrique Tavares, Mario Cravo Junior, Carybé, Carlos Bastos, Walter da Silveira, Heron de Alencar. Nessa revista escrevia críticas literárias. Na Faculdade de Direito – na época um importante núcleo nacional de estudos jusfilosóficos de orientação sociológica – colaborou na fundação da revista “Ângulos”, ligada ao Centro Acadêmico Rui Barbosa. Com 18 edições, entre 1950 e 1966, essa revista foi um dos marcos culturais na vida universitária, publicando textos de professores, alunos e escritores nacionais e estrangeiros sobre questões políticas, filosóficas e literárias. Nela escreveram, entre outros, Carlos Nelson Coutinho, João Ubaldo Ribeiro, Glauber Rocha e Zahidé Vinhares Torres que viria a ser professora no departamento de Sociologia da UFBA e que, em 1952, se casou com Machado Neto. No Mestrado em Ciências Humanas reunia semanalmente com professores e alunos para discussão de textos filosóficos e sociológicos.

Sua produção intelectual discute, principalmente, três grandes temáticas: filosofia/sociologia jurídica, filosofia das ciências sociais e sociologia do conhecimento. Todo seu material bibliográfico está preservado pelo Centro de Estudos Machado Neto, Faculdade de Direito da UFBA. No campo do Direito, destacou-se por explorar os fundamentos da “Teoria Egológica” desenvolvida pelo fenomenólogo argentino, Carlos Cossio, o qual redirecionou o pensamento jurídico nos meados do século XX ao argumentar que o objeto de interpretação do Direito é a conduta humana (enquanto parte de modos de coexistência) e não a norma, como tradicionalmente é pensado. Para a “teoria Egológica”, norma é apenas o momento lógico de captação da conduta humana.

Desde cedo, Machado Neto interessou-se pelas ciências sociais, produzindo trabalhos principalmente em duas áreas: (a) na fundamentação epistemológica-ontológica dos fenômenos sociais mediante os pressupostos da fenomenologia-existencial (principalmente Husserl, Heidegger, Ortega y Gasset e Carlos Cossio); (b) nos estudos sociológicos do conhecimento, mais particularmente, sobre “vida intelectual”, temática no qual foi um dos pioneiros no Brasil. Seu primeiro livro, publicado em 1952 (aos 22 anos de idade) – “Marx e Mannheim. Dois Aspectos da Sociologia do Conhecimento” – recebeu uma Menção Honrosa em concurso nacional promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia.

Em 1968, publicou pela Grijalbo “Da vigência intelectual”, vindo a concluir suas pesquisas nessa temática com a publicação do livro “Estrutura social da república das letras. Sociologia da vida intelectual brasileira – 1870-1930” (Ed. da Universidade de São Paulo, 1973). Mediante uma inventariação biográfica de 60 escritores brasileiros, Machado Neto discute, nesse trabalho, o surgimento da “profissão intelectual” utilizando-se de 7 categorias analíticas (ecologia social, meios de subsistência, níveis de educação formal, condições políticas da vida intelectual, público, estrutura social e vigências). Trata-se de uma pesquisa empírica interessada na constituição e características do meio em que se dá a vida intelectual, nas formas de interação entre intelectuais (e seu público), nas estruturas internas dos agrupamentos ou dos “espaços intelectuais”. Nesse sentido, sua modalidade de análise (hoje já bem conhecida) diferia significativamente das abordagens prevalecentes na época, as quais privilegiavam a obra intelectual, a “hermenêutica do texto”, analisando os seus pressupostos teórico-metodológicos e usualmente reduzindo-os, em termos causais, a um conjunto determinado de contextos históricos.

A preocupação de Machado Neto com questões epistemológicas e ontológicas dos fenômenos sociais data dos meados dos anos 50. Dois livros se destacam nessa temática. O primeiro, “Problemas Filosóficos das Ciências Humanas” (Ed. UNB, 1966), reúne trabalhos publicados entre 1956 e 1963. São textos que procuram fundamentar epistemologicamente a sociologia, levando em devida consideração as especificidades do ato gnosiológico característico das ciências sociais. O segundo, “Para uma Eidética Sociológica” (1977) – infelizmente bastante desconhecido, foi publicado semanas após a sua morte em uma edição do Mestrado em Ciências Humanas – é uma coletânea de ensaios escritos entre 1971 e 1976 que buscam desenvolver uma eidética do social que pudesse “responder em profundidade à questão que indaga sobre o que é social (ou a cultura)” (p. 3). Fundamentados em bases fenomenológicas-existenciais, esses textos discutem as especificidades de uma ontologia do social: a vida cotidiana, a convivência, o projeto, a situação biográfica. É importante chamar atenção para o fato de que suas reflexões filosóficas se contrapunham aos princípios “metateóricos” que predominavam nos estudos sociológicos brasileiros da época. Nas décadas de 1960-70 a sociologia brasileira mantinha, com poucas exceções, um caráter sistêmico, essencialmente analítico e crítico, buscando nos fenômenos sociais regularidades objetivas (estruturas, leis, sistemas de relações). Nesse sentido, a obra de Machado Neto pode ser vista, no plano nacional, como precursora das reviravoltas ontológico-epistemológicas das ciências sociais estimuladas pelo movimento fenomenológico. Lembremos que somente a partir dos fins do século XX que a “sociologia fenomenológica” se tornou universalmente conhecida.

Sugestões de obras do autor:

NETO, A. L. M. Teoria do Direito e Sociologia do Conhecimento. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965

NETO, A. L. M. Problemas Filosóficos das Ciências Humanas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1966

NETO, A. L. M. Estrutura Social da República das Letras. Sociologia da Vida Intelectual Brasileira – 1870-1930. São Paulo: Grijalbo, 1973

NETO, A. L. M. Para uma Eidética Sociológica. Salvador: Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFBA, 1977