Anete Ivo

Por Graça Druck (UFBA)

A trajetória acadêmica e intelectual de Anete Brito Leal Ivo é representativa de uma geração que contribuiu para manter a sociologia brasileira viva e conectada nacional e internacionalmente. Desde a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (1964-1967), sua trajetória foi marcada por encontros com grandes mestres, como o antropólogo Thales de Azevedo, com quem iniciou sua formação em pesquisa e o historiador István Jancsó, com quem realizou estudos sobre classe operária e industrialização na Bahia. Anete Ivo se beneficiou de um ambiente intelectual constituído por jovens professores baianos que se tornaram grandes referências como Maria Brandão, em Sociologia, João Ubaldo Ribeiro, em Ciência Política e Milton Santos em estudos urbanos e regionais, além de professores recém chegados à Bahia como Klaas Woortman e Perseu Abramo.

Tributária de uma herança interdisciplinar entre sociologia, antropologia e história, iniciou sua carreira docente em 1968 na Universidade Católica do Salvador e, em 1971, entrou no Departamento de Sociologia da UFBA. Ingressou no ano seguinte no Mestrado em Ciências Sociais da UFBA (1972-1975), defendendo a dissertação Pesca: tradição e dependência, um estudo sobre a sobrevivência da atividade pesqueira (tradicional) no contexto da modernização urbano-industrial de Salvador.

Após um período de assessoria na área de ensino superior, foi convidada a integrar o então CRH – Centro de Recursos Humanos (atualmente Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades) em 1978, instituição de pesquisa cuja história institucional teve em Anete Ivo uma personagem central. Esteve na direção desse Centro em vários mandatos, participou ativamente na formulação de suas linhas de pesquisa e elaborou um novo projeto editorial para o Caderno CRH, abrindo a revista à comunidade acadêmica pela submissão pública de artigos, consolidando-a como um periódico de referência da Sociologia brasileira. Integrou a Comissão de Assessoramento à Publicações do CNPq (2013-2016) e participa de conselhos editoriais de periódicos de referência, no Brasil e no exterior. Organizou várias obras coletivas, com destaque para o Dicionário Desenvolvimento e Questão Social (Annablume: 2013 em 2ª ed, 2020), em colaboração com E. Kraychete, A. Borges, D. Vitale, C. Mercuri e S. Sennes, uma obra de referência que reúne 114 pesquisadores de 40 universidades brasileiras e estrangeiras, explorando as interfaces do desenvolvimento econômico com as dimensões sociais, políticas e culturais contemporâneas, finalista do 56º Prêmio Jabuti (2014).

Liderou iniciativas pioneiras de intercâmbios acadêmicos internacionais desde 1979, quando ingressou no Institut des Hautes Études de l´Amérique Latine da Université de Paris III para realizar seu doutorado, e construiu um programa de intercâmbio científico apoiado em acordos CNPq/CNRS e CAPES /COFECUB. Desde então Anete Ivo tem circulação constante em instituições acadêmicas estrangeiras: ocupou a Cátedra Simon Bolívar da Université de Paris III (2000); atuou como professora convidada em várias universidades francesas e foi pesquisadora associada ao CREDAL/CNRS (1995-2010). Nos anos 1990 ingressou na rede de estudos regionais da América latina do CLACSO e em outras redes de pesquisa internacionais, contribuindo para a internacionalização da pesquisa em ciências sociais da UFBa. Sua produção em estudos sobre desigualdades e pobreza referendaram sua escolha como Fellow do Comparative Research Programme on Poverty do International Social Science Council da UNESCO (mandato 2014-2018) na University of Bergen (Noruega).

Com uma produção acadêmica que articula a sociologia política, a sociologia histórica e a sociologia do desenvolvimento, Anete Ivo dedicou-se ao estudo de regimes de transição e mudança social na crítica ao capitalismo periférico. Na década de 70 fez uma critica à modernização brasileira da perspectiva das populações tradicionais (pescadores), seguindo a discussão do papel das classes agrárias na transição democrática. Nesse campo, explora a dimensão política e ideológica da luta “sobre” as classes, mostrando as relações entre conflitos sociais e disputas cognitivas no âmbito das ciências sociais e da política. Essas reflexões alimentaram sua participação em redes internacionais e nacionais, como a rede de pesquisadores do Norte e Nordeste, e que repercutiram na institucionalização das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFBa (Questões Agrário-Camponesas, 1989) e no CRH/UFBA (A territorialidade das classes agrárias, 1991).

Desde 1996, Anete Ivo iniciou um novo ciclo de pesquisas, que explorou as assimetrias entre globalização e democracia, mostrando a reversão da pauta da democratização brasileira no contexto de hegemonia do mercado, processo que ela designa como “reconversão perversa”. Realizou estudos críticos sobre novos paradigmas da ação coletiva no contexto neoliberal – a local governance, com base em estudo empírico e comparativo sobre sistemas de governance, no espaço público em diversos programas municipais.

É autora de inúmeros artigos em revistas arbitradas, de dois livros integrais e de quase 50 capítulos de livros em editoras nacionais e estrangeiras. Dessa produção destaca-se a obra Metamorfoses da Questão democrática: (Buenos Aires: CLACSO, 2001) ganhadora do II Concurso de Pesquisadores Seniores do CLACSO, no qual ela apresenta os paradoxos da transição em curso e os dilemas das sociedades latino-americanas, no encaminhamento da nova questão social no contexto do capitalismo globalizado.
Beneficiando-se de diálogos com autores franceses sobre a “crise da questão social” e do Estado Providência, seus estudos se reorientaram nos anos 2000 para a temática da Questão Social, políticas sociais e desigualdades sociais, examinando um movimento de “reconversão da questão social” pelas rupturas entre trabalho, proteção e solidariedade nacional, num contexto marcado pela dessocialização do trabalho e desorganização/reorganização do Estado social.

O livro Viver por um fio: pobreza e políticas sociais (Annablume, 2008), fruto da sua tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, faz um esforço de construção de uma “sociologia da pobreza” desde os autores clássicos, discutindo o enigma da questão social brasileira e os limites de um liberalismo social focalizado sobre os mais pobres. Sem desconhecer a importância desses programas no alívio das condições de pobreza, a análise revela um processo de “objetivação social” dos beneficiários dos programas de renda, que a autora chama de “coletivos de destino” ou uma “classe para o outro” (Bourdieu, 1987) pela tecnificação e despolitização da questão social.

Em 2012 realizou um balanço da produção brasileira sobre a Sociologia do Desenvolvimento buscando entender o neodesenvolvimentismo brasileiro dos anos 2000 sob a hegemonia neoliberal. Examinou a circulação do conhecimento entre as agências multilaterais internacionais e a agenda da Sociologia do Desenvolvimento brasileira no livro que organizou – A reinvenção do desenvolvimento (EDUFBA/CNPQ, 2016)-, desnaturalizando a agenda do desenvolvimento social e sustentável, como resultado das lutas e práticas dos agentes e classes sociais, que interpelam as assimetrias entre sociedade, mercado e política; territórios, trabalho e capital.

Sua trajetória esteve articulada ao ensino da Sociologia na UFBA, nas disciplinas teóricas sobre estado e classes sociais, além da sociologia agrária e à realização de sua pesquisa no Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades/UFBA. Foi professora convidada na Université de Paris III e Paris XII, pesquisadora visitante e docente em cursos oferecidos pela rede de estudos regionais da América Latina (Clacso/Crop-ISSC), tendo atuado, na pós-graduação da UCSal (2009-2019).

É membro titular da Academia de Ciências da Bahia e membro do RC 09 – Social Transformations and the Sociology of Development e do RC 21- Sociology of Urban and Regional Development da International Sociology Association (ISA).

Anete Ivo, baiana de Salvador, nasceu em janeiro de 1945 e é casada há mais de cinco décadas com Rubem Ivo, engenheiro e escritor, com quem teve duas filhas: Any Ivo, Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA e professora nessa faculdade, e Cláudia Low, tributarista e Master pela University of Miami Law School e tem dois netos. Uma família que sempre lhe deu todo apoio para desenvolver a sua brilhante trajetória intelectual.

Sugestões de obra da autora:

IVO, Anete. La Violence Muette: Notes sur l’Etat et la citoyenneté des travailleurs ruraux. Cahiers de Recherches du Brésil Contemporain, CRBC, Paris, v. 04, p. 45-57, 1988. [Publicado originalmente in: Caderno CRH, n. 3, 1987].

IVO, Anete. La Cuestión Agraria y la crises en el Aparato del Estado. Estudios Sociológicos, DF – México, v. IX, n.25, p. 61-74, 1991.[Publicado originalmente in: Caderno CRH, n. 13, 1990]

IVO, Anete. Metamorfoses da Questão democrática: governabilidade e pobreza. (Buenos Aires: CLACSO, 2001).

IVO, Anete. Viver por um fio: pobreza e políticas sociais (S. Paulo: Annablume, 2008).

CIMADAMORE, Alberto; IVO, Anete; MIDAGLIA, Carmen; BARRANTES, Alexandra. Estados de bien estar, derechos e ingresos básicos en América Latina (Ciudad de México: Editora Siglo XXI, 2019).

IVO, Anete (Coord.); KRAYCHETE, Elsa; BORGES, Ângela; MERCURI, Cristiana; SENNES, Stela. Dicionário Temático sobre Desenvolvimento e Questão social (S. Paulo: Annablume, 2013, 2020)

IVO, Anete. A circulação das ideias (França-Brasil) entrevista com Hélène Rivière d´Arc. Caderno CRH (Online), v. 33, p. 020036-19, 2020.

Sobre a autora:

IVO, Anete. Memória das Ciências Sociais no Brasil. FGV/CPDOC, entrevista em 20.05.2016. Disponível em https://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/AneteIvo
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