Brasil, marca global

Publicado em 19 de novembro de 2020

Por Marcelo Ridenti
Professor do Departamento de Sociologia IFCH/Unicamp

Neste post, Marcelo Ridenti escreve sobre o livro Do Brasil e outras marcas. (São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2019, 265p) de Michel Nicolau Netto.

Brasil virou marca. E valorizada no mercado de bens simbólicos quando o país recebeu a Copa do Mundo de futebol de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Esse é o tema do livro instigante de Michel Nicolau Netto, Do Brasil e outras marcas, fruto de extensa pesquisa realizada na Unicamp, inicialmente com uma bolsa de pós-doutorado da Fapesp, depois como professor do Departamento de Sociologia. Com densidade sociológica, sem prejuízo da clareza e da fluência, ele aborda a relação entre representações nacionais e megaeventos esportivos. Esclarece particularmente como as imagens do Brasil são produzidas e inseridas na cultura de consumo do mercado global de símbolos, sob controle de poderes corporativos.

Michel Nicolau Netto, autor Do Brasil e outras marcas (2019)

No sentido mais restrito, o livro é uma contribuição fundamental para compreender a lógica dos chamados megaeventos, particularmente na área esportiva, com todos os interesses envolvidos sendo articulados no mercado global a partir de imagens nacionais ressignificadas. No sentido mais amplo, a obra ajuda a compreender o tema da produção cultural da nação no contexto da globalização. Mostra como as representações nacionais envolvem processos globais que por sua vez não prescindem do Estado-nação, que continua a produzi-las, mas sem deter o monopólio dessas representações que não encontram mais sua centralidade no espaço nacional. Assim, tendo agora como objeto os megaeventos esportivos, Michel Nicolau dá continuidade à reflexão de seus livros anteriores, debruçados sobre a produção musical globalizada: Música brasileira e identidade nacional na mundialização (Annablume, 2009), e O discurso da diversidade e a World Music (Annablume, 2014).

Na disputa das representações da nação com outros agentes no espaço transnacional, o Estado brasileiro usa suas próprias agências especializadas, como a EMBRATUR e a APEX-Brasil. Recorre também à contratação de empresas privadas que atuam internacionalmente (Millward Brown, McGarry Bowen e outras). Tudo se articula num jogo de disputas conduzidas conforme as conveniências de empresas privadas transnacionais, cujos interesses são garantidos pelo próprio Estado-nação, que cede seu território para megaeventos. Neles operaria uma desnacionalização da autoridade, que passa a ser exercida em certo espaço por agências como a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o Comitê Olímpico Internacional (COI). Nesse processo, a atuação transnacional de publicitários especializados em produzir imagens nacionais ganha destaque. Eles se constituiriam como uma espécie de novos intelectuais, afinal ocupariam a função de produzir identidades nacionais na era da globalização, no papel de “artífices da identidade nacional produzindo as marcas-nação” (p.17). 

A obra procura compreender a larga gama de agentes, as disputas e conflitos no seio dos promotores dos jogos, destacando as aproximações e tensões entre Estado e capital, envolvidas nos megaeventos. O primeiro capítulo trata do discurso dos publicitários sobre a nação, adequando as representações nacionais à cultura de consumo transnacional. Desenvolve-se a “marca-nação”, em que a imagem nacional estaria colocada num “processo que produz representações nacionais e das cidades através de ferramentas de marketing, inseridas em uma cultura de consumo e tendo em vista a valorização dessas imagens para a competição em um mercado global de símbolos” (p.30). A marca-nação seria algo com referência nacional, mas “de forma que possa ser compartilhada e valorizada globalmente”, com a integração pelo mercado (p.51). Esse tema é aprofundado no segundo capítulo, sobre a globalização da identidade nacional, na qual o próprio Estado-nação se torna agente interessado no discurso e na produção da nação como marca.

O foco do terceiro capítulo é a economia simbólica dos megaeventos, que se tornaram desnacionalizados. A autoridade sobre suas formas de representação passou para as mãos de instâncias internacionais, sob controle do COI e da FIFA, sobretudo a partir de 1990, quando amadureceu a globalização. Segundo Nicolau, “os megaeventos se globalizam porque podem se aportar em qualquer lugar e, assim, elevar a condição desse lugar (de uma nação, de uma cidade) em disputar um mercado global de símbolos, altamente saturado” (p.118). O processo de desnacionalização seria realizado dentro das estruturas do próprio Estado-nação onde se realizam os jogos.

No quarto capítulo, há uma análise mais detida dos objetos centrais da pesquisa empírica, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2018, com a produção do que o autor chama de um “espaço-mídia desnacionalizado”. O Estado desnacionalizaria certas áreas da cidade, com fronteiras sucessivas que os participantes devem ultrapassar, desde as áreas adjacentes ao megaevento, passando pela área expandida, até atingir a área nuclear, onde a autoridade sobre as formas simbólicas caberia ao COI, ou à FIFA e instituições ligadas a eles.

 O quinto capítulo dedica-se a explicar como o Estado brasileiro usou nos megaeventos as suas agências EMBRATUR e APEX-Brasil, em disputa pela representação simbólica nacional no contexto da globalização, com uma agenda nacional voltada para o exterior. O tema segue no sexto capítulo, que destaca o papel de “administradores do simbólico” desempenhado pelos agentes do Estado e outros na disputa pelas representações nacionais nos megaeventos. Os publicitários, detentores das formas como a nação é representada na globalização, formariam uma “rede de especialistas transnacionais”, artífices especializados em representação nacional, “uma elite de trabalhadores criativos nômades que circula pelo globo”, organizando megaeventos (p.232). Seu poder como novos intelectuais seria legitimado por deterem o saber para a “transformação da memória nacional em um objeto do mercado global de símbolos […] intermediado pela cultura de consumo, pela mídia e pela indústria cultural”, conectando consumidores de diversos lugares. Haveria certo “provincianismo global” envolvido nos megaeventos, a “imaginar o mundo como um grande mercado de símbolos formados por nações, por marcas; por marcas-nação” (p.244-246).

Bastante abertas, inspiradas em autores como Pierre Bourdieu e Renato Ortiz, as escolhas teóricas e metodológicas são pertinentes para explorar a extensa pesquisa de campo. O livro apresenta uma profusão de referências e debates com a bibliografia mais atualizada em âmbito nacional e internacional, referida de modo acessível também ao leitor não familiarizado com o tema, que tem o acesso ao texto facilitado por uma série de quadros e fotos ao fim de cada capítulo.

Em suma, o livro é muito bem construído, fruto de uma pesquisa exaustiva, que pode gerar novas questões. Por exemplo, a respeito de um aspecto registrado de passagem: os megaeventos no Brasil foram realizações de governos do Partido dos Trabalhadores, em certa medida já planejados em administrações do Partido da Social Democracia Brasileira. E sua implementação coube em grande parte ao Ministério do Esporte, ocupado durante muito tempo por representantes do Partido Comunista do Brasil. Assim, pode-se indagar: caberia concluir, implicitamente, que as diferenças partidárias e ideológicas importariam pouco, diante de uma lógica em que o Estado nacional seria ao mesmo tempo refém e parceiro das grandes corporações privadas transnacionais para vender a marca Brasil no mercado globalizado?  

A obra destaca – com pertinência – os conflitos entre Estado e capital na realização dos megaeventos. Talvez valha a pena indagar mais especificamente como se expressam os conflitos no seio do próprio Estado e entre os capitais envolvidos. Ainda mais interessante seria poder acompanhar os embates com aqueles que não são nem agentes estatais nem das empresas transnacionais privadas. Trata-se dos que normalmente participam apenas como consumidores-expectadores, às vezes como opositores dos megaeventos. Os sujeitos que – como aparece numa passagem sugestiva do livro – avançaram coletivamente para protestar nos limites das áreas transnacionalizadas a que não tiveram acesso, barrados pela polícia, recusando a redução do Brasil a uma marca.

Como citar este post

RIDENTI, Marcelo. Brasil, marca global. Blog da SBS, publicado em dia.mês.ano. Disponível em: [linkdapublicação]

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